segunda-feira, 28 de março de 2011

Eduardo Galeano - De Pernas Para o Ar - 20€

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sábado, 6 de janeiro de 2007

Lições da Sociedade de Consumo

O suplício de Tântalo atormenta os pobres. Con­denados a sede e à fome, estão também condenados a contemplar os manjares que a publicidade ofere­ce. Quando aproximam a boca ou esticam a mão, essas maravilhas afastam-se. E se apanham alguma, lançando-se ao assalto, vão parar à cadeia ou ao ce­mitério.Manjares de plástico, sonhos de plástico. E de plástico o paraíso que a televisão promete a todos e a poucos concede. Ao seu serviço estamos. Nesta civi­lização, onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram sequestrados pelos meios: as coisas compram-te, o automóvel con­duz-te, o computador programa-te e a televisão vê-te.
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Globalização, bobalização
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Até há alguns anos, o homem que não devia nada a nin­guém era virtuoso exemplo de honestidade e vida laboriosa. Hoje, é um extraterrestre. Quem não deve não é. Devo, logo existo. Quem não é digno de crédito não merece nome nem rosto: o cartão de crédito prova o direito à existência. Dívi­das: isso tem quem nada tem; uma pata metida nessa ratoeira há-de ter qualquer pessoa ou país que pertença a este mundo.
O sistema, transformado em sistema financeiro, multipli­ca os devedores para multiplicar os consumidores. Dom Karl Marx, que há mais de um século as viu aproximar-se, adver­tiu para o facto de a tendência para a queda das margens de lucro e a tendência para a superprodução obrigarem o siste­ma a crescer sem limites e a estender até à loucura o poder dos parasitas da «moderna bancocracia», que definiu como «um bando que não sabe nada de produção nem tem nada a ver com ela».
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A explosão do consumo no mundo actual faz mais baru­lho que todas as guerras e arma mais confusão que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: “quem bebe à conta embebeda-se a dobrar”. A farra aturde e turva a vi­são; esta tão grande bebedeira universal parece não ter limi­tes nem no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo faz muito barulho, como o tambor, porque é vazia; e na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o bêbe­do acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que tem que pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe são impostas pelo sistema que as gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões precisam de ar, e, por seu turno, precisam que andem de rastos, como andam, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
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O sistema fala em nome de todos, a todos dirige as suas imperiosas or­dens de consumo, entre todos difunde a febre compradora; mas nem pensar: para quase todos, esta aventura começa e acaba no ecrã do televisor. A maioria, que se endivida para ter coi­sas, acaba por ter muito mais que dívidas para pagar, dívidas que geram novas dívidas, e acaba por consumir fantasias que por vezes se materializam a delinquir.
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A difusão em massa do crédito, avisa o sociólogo Tomás Moulian, tornou possível que a cultura quotidiana do Chile gire à volta dos símbolos do consumo: a aparência como nú­cleo da personalidade, o artifício como modo de vida, «a uto­pia a prazo de quarenta e oito meses». O modelo consumista foi-se impondo, ao longo dos anos, desde que em 1973 os jets Hawker Hunter bombardearam o palácio presidencial de Sal­vador Allende e o general Augusto Pinochet inaugurou a era do milagre. Um quarto de século depois, no início de 98, The New York Times explicou que esse golpe de Estado tinha dado início à «transformação do Chile, que era uma república das bananas estancada e se transformou na estrela económica da América Latina».
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Quantos chilenos são iluminados por esta estrela ? Um quarto da população sobrevive em estado de pobreza absolu­ta e o senador democrata-cristão Jorge Lavandero demonstrou que os cem chilenos mais ricos do mundo ganham mais do que tudo o que o Estado gasta anualmente em serviços sociais. O jornalista norte-americano Marc Cooper encontrou muitos impostores no paraíso do consumo: chilenos que se deixam assar com as janelas fechadas para fingir que têm ar condicionado no automóvel, ou que falam por telemóveis de brinque­do, ou que usam o cartão de crédito para comprar batatas ou umas calças em doze prestações. O jornalista também des­cobriu alguns trabalhadores zangados nos supermercados Jumbo: aos sábados de manhã, há pessoas que enchem o carrinho até ao cimo com os artigos mais caros, se passeiam nos corredores a exibir-se por algum tempo e depois abandonam o carrinho repleto e saem pela saída lateral sem comprar nem uma pastilha elástica.
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O direito ao esbanjamento, privilégio de poucos, diz ser liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e dir-te-ei quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as gali­nhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para crescerem mais depressa. Nas fábricas de ovos, às galinhas também está interdita a noite. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e a angústia de pagar.Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, ma: é muito bom para a indústria farmacêutica. Os Estados Uni­dos consomem metade dos sedativos, ansiolíticos e restantes drogas químicas vendidas legalmente no mundo, e mais de metade das drogas proibidas vendidas ilegalmente, o que não é pouco se se tiver em conta que os Estados Unidos sornam apenas cinco por cento da população mundial.
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«Gente infeliz a que vive a comparar-se,,, lamenta uma mulher no bairro de El Buceo, em Montevideu. A dor de já não ser, outrora cantada pelo tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um homem pobre. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bair­ro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro confirma, na cida­de dominicana de San Francisco de Macorís: «Os meus irmãos trabalham para as marcas. Passam a vida a comprar etiquetas e a suar em bica para pagar as prestações.,,
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, a escala gigantesca, impõe em todo o lado as suas pautas de con­sunlo obrigatórias. Esta ditadura da uniformização obrigatória' é mais devastadora que qualquer ditadura de partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz- os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
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O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica, The Lancet, na última década a« obesidade severa» cres­ceu quase trinta por cento entre a população jovem dos paí­ses mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou em quarenta por cento nos últimos de­zasseis anos; de acordo com investigação recente do entro de Ciências da Saúde da Universidade de Colorado. O país que inventou as comidas e as bebidas light, a diet food e os ali­mentos fat free possui a maior quantidade de gordos do mun­do. O consumidor exemplar só desce do automóvel para trabalhar e para ver televisão. Sentado diante do pequeno ecrã, passa quatro horas por dia a devorar comida de plástico.
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Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a colonizar os paladares do mundo e a reduzir a cinzas as tradi­ções da cozinha local. Os hábitos da boa comida, que vêm de longe, têm, nalguns países, milhares de anos de refinamento e de diversidade e constituem um património colectivo que, de algum modo, se encontra nos fogões de todos e não ape­nas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses traços de identi­dade cultural, essas festas da vida, estão a ser esmagados, de modo fulminante, pela imposição do sabor químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast fond. A plastificação da comida à escala mundial, obra da MacDonald's, da Burger King e doutras fábricas, viola com êxito o direito à au­todeterminação da cozinha: sagrado direito, porque a boca é uma das portas da alma.
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O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os mús­culos, que a Coca-Cola oferece eterna juventude e que o menu da MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atle­ta. O imenso exército da MacDonald's dispara hambúrgueres para as bocas das crianças e dos adultos em todo o planeta. O duplo arco desse M serviu de estandarte, durante a recen­te conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante da McDonald's de Moscovo, inaugurada em 1990 com bombos e pratos, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta elo­quência como o desmoronamento do Muro de Berlim.
Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtu­des do mundo livre, nega aos empregados a liberdade de se filiarem em qualquer sindicato.
A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera.
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Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empre­sa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restau­rante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas em 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cida­de próxima de Vancôver, conseguiram essa conquista, digna do Guiness.Em 1996, os militantes ecologistas britânicos, Helen Steel e David Morris, encetaram um processo judicial contra a McDonald's. Acusaram a empresa por maus tratos aos traba­lhadores, violação da Natureza e manipulação comercial das emoções infantis: os empregados são mal pagos, trabalham em más condições e não podem associar-se; a produção de carne para os hambúrgueres arrasa as florestas tropicais e despoja os indígenas; e a publicidade multimilionária atenta contra a saúde pública, induzindo as crianças a preferir alimentos de muito duvidoso valor nutritivo. A disputa, que a princípio parecia a picada de um mosquito no lombo de um elefante, teve bastante repercussão, ajudou a difundir toda esta infor­mação que a opinião pública ignora e está a tornar-se uma cara e longa dor de cabeça para uma empresa habituada à impuni­dade do poder. Ao fim e ao cabo, é do poder que se trata: a McDonald's emprega, nos Estados Unidos, mais gente que toda a indústria metalomecânica e, em 1997, as suas vendas superaram a soma das exportações totais da Argentina e da Hun­gria. O Big Mac é tão mas tão importante que o seu preço é usado em vários países como unidade de valor para as transac­çbes financeiras internacionais: a comida virtual orienta a eco­nomia virtual. Segundo a publicidade da McDonald's no Brasil, o Big Mac, produto de topo da casa, é como o amor: dois cor­pos que se abraçam e se beijam a escorrer molho tártaro, exci­tados pelo queijo e o pepino, enquanto os seus corações de cebola ardem, estimulados pela verde esperança da alface.
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Preços baixos, tempo breve: as máquinas humanas rece­bem o seu combustível e imediatamente retornam ao sistema produtivo. Numa destas gasolineiras trabalhou, em 1983, o escritor alemão Günther Wallraf£ Era um dos McDonald's da cidade de Hamburgo, que é inocente das coisas que se fazem em seu nome. Wallraff trabalhou a correr sem parar, salpica­do pelas gotas de óleo a ferver: uma vez descongelados, os hambúrgueres têm dez minutos de vida. Depois, empestam. Têm que ser atirados para a chapa sem perda de tempo. Tudo tem o mesmo sabor: as batatas fritas, as verduras, a carne, o peixe, o frango. E um sabor artificial, ditado pela indústria química, que também se ocupa a esconder, com corantes, os vinte e cinco por cento de gordura que a carne contém. Esta porcaria é a comida de maior êxito do nosso século. Os seus mestres de cozinha formam-se na Hamburguer University, em Elk Grove, Ilinbis. Mas os donos do negócio, segundo fontes bem informadas, preferem os caríssimos restaurantes que ofe­recem os mais sofisticados pratos disso a que se há-de chamar comida étnica: sushi, thai, persa, javanesa, hindu, mexicana... Democracia não é desleixo.
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As massas consumidoras recebem ordens numa língua universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não conseguiu. Qualquer um percebe, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quartel do século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Gra­ças a eles, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de ócio vai-se tornando tem­po de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o tele­visor tem a palavra. Comprado a prestações, este animalzinho prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtu­des dos automóveis de último modelo, e pobres e ricos ficam a saber das vantajosas taxas de juro que tal ou tal banco oferece.
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Pobre é o que não tem ninguém, diz e repete uma velha que fala sozinha nas ruas de São Paulo. A gente é cada vez mais muita e cada vez está mais só. Os solitários tornados muitos constituem multidões que se apertam nas cidades:
- Poderia, por favor, tirar o cotovelo do meu olho?
Os peritos sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuros contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume beija-te, o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de con­sumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. Os bura­cos no peito fecham-se atafulhando-os de coisas, ou sonhando com fazê-lo. E as coisas não podem só abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem-te e salvam-te do anonimato multitudinário. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou raramente o faz. Isso é o de menos. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem quer transformar-se comprando esta loção para depois da barba?
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O criminologista Anthony Platt observou que os delitos de rua não são apenas fruto da pobreza extrema. São também fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade; mas qualquer telespectador pobre tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão semelhante a ela que a diferença é mera questão de especialistas. Segundo o historiador Eric Hobsbawn, o século xx pós fim a sete mil anos de vida humana, centrada na agricultura desde que apareceram os primeiros cultivos no final do Paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses tornam-se citadinos, Na América Latina, temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de ex­portação e pela erosão das suas terrinhas, os camponeses in­vadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todo o lado, mas sabem por experiência que atende nas grandes ur­bes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um porvir para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém-chegados é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é gratuito e que os mais caros artigos de luxo são o ar e o silêncio.
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Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano de Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas gostam de juntar-se». Jun­tar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem ?. Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra­-se com o mundo ? E as pessoas, encontram-se com pessoas ? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quantas pessoas se encontram com as coisas?
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O mundo inteiro tende a transformar-se num ecrã de te­levisão, onde se vêem as coisas, mas não se tocam. As merca­dorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As paragens de autocarro e as estações de comboio, que até há pouco eram pontos de encontro entre pessoas, estão agora a transformar-se em espaços de exibição comercial.O shopping center, o shopping mall, montra de todas as montras, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acodem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a mino­ria compradora se submete ao bombardeamento da oferta in­cessante e extenuante. A gentalha, que sobe e desce pelas escadas rolantes, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vin­dos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a fotografia, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do prócere na praça. Beatriz Sano observou que os habitantes dos bairros suburbanos aco­dem ao center, ao shopping center, como antes acudiam ao cen­tro.
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O tradicional passeio de fim-de-semana ao centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes oásis ur­banos. Lavados, engomados e penteados, vestidos com roupa domingueira, os visitantes vêm a uma festa para a qual não são convidados, mas podem ser mirones. Famílias inteiras em­preendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma alucinante paisagem de modelos, marcas e etiquetas.
A cultura de consumo, cultura do efémero, condenação ao desuso imediato. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhe­cem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Neste final de século onde a única coisa permanente é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz, ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã sabe-se lá, e todo o trabalhador é um desempregado em potência. Paradoxalmen­te, os shopping centers, reinos de fugacidade, oferecem a mais bem sucedida ilusão de segurança. Eles existem fora do tem­po, sem idade e sem raízes, sem noite e sem dia e sem memó­ria, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
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Nestes santuários do bem-estar pode fazer-se tudo, sem necessidade de sair para a intempérie suja e ameaçadora, Até dormir se pode, segundo os últimos modelos de shoppings, que em Los Angeles e em Las Vegas incluem serviços de hotelaria e ginásios. Os shoppings, que não dão nem pelo frio nem pelo calor, estão a salvo da contaminação e da violência. Michael A. Petti publica os seus conselhos científicos na imprensa mundial, numa difundida série chamada Viva mais. Nas ci­dades com má qualidade do ar, o dr. Petti aconselha a quem quer viver mais: «Caminhe dentro de um centro centro comercial». O cogumelo atómico da contaminação pende sobre cidades como o México, São Paulo ou Santiago do Chile, e nas esqui­nas o crime ameaça; mas neste frígido mundo fora do inun­do, ar asséptico, passeios vigiados, pode-se respirar e caminhar e comprar sem riscos.
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Os shoppings são todos mais ou menos iguais, em Los An­geles ou em Banguecoque, em Buenos Aires ou em Glas­gow. Esta unanimidade não os impede de competir na inven­ção de novos ímanes para apanhar clientes. Por exemplo, à revista Veja exaltava assim, em finais de 91, uma das novida­des do shopping Praia das Belas, em Porto Alegre: «Para o con­forto dos bebes, oferecem-se-lhes carrinhos, facilitando assim o passeio destes pequenos consumidores». Mas a segurança é o artigo mais importante que todos os shopping centers ofere­cem. A segurança, mercadoria de luxo, está ao alcance de qualquer um que penetre nestes bunkers. Na sua infinita ge­nerosidade, a cultura de consumo oferece-nos o salvo-conduto que nos permite fugir do inferno das ruas. Rodeadas de imen­sas praias de estacionamento, onde os automóveis aguardam, estas ilhas oferecem espaços fechados e protegidos. Aí as pes­soas cruzam-se com as pessoas, chamadas pelas vozes do consumo, como antes as pessoas se encontravam com outras pessoas chamadas pela vontade de se verem, nos cafés ou nos espa­ços abertos das praças, dos parques e dos velhos mercados: nos nossos dias, essas intempéries estão demasiado expostas aos riscos da violência urbana. Nos shoppings, não há perigo. A po­lícia pública e a polícia privada, a polícia visível e a polícia invisível, ocupam-se de pôr os suspeitos na rua ou na cadeia.
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Os pobres que não sabem disfarçar a sua perigosidade congé­nita e, sobretudo, os de pele escura, podem ser culpados até não se provar a sua inocência. E, se são crianças, pior. A pe­rigosidade é inversamente proporcional à idade. Já em 1979, um relatório da polícia colombiana, apresentado ao congres­so policial sul-americano, explicava que a polícia infantil não tinha tido outro remédio senão abandonar a sua obra social para «atalhar as maldades» dos menores perigosos e «evitar o estorvo que a sua presença causa nos centros comerciais».
Estes gigantescos supermercados, transformados em cida­des em miniatura, são também vigiados pelos sistemas electró­nicos de controlo, olhos que vêem sem serem vistos, câmaras ocultas que seguem os passos da multidão que deambula por entre as mercadorias; mas a electrónica não serve apenas para vigiar e punir os indesejáveis que podem sucumbir à tentação dos frutos proibidos. A tecnologia moderna também serve para que os consumidores consumam mais. Na era cibernética, quando o direito à cidadania se fundamenta no dever do con­sumo, as grandes empresas espiam os consumidores e bombar­deiam-nos com a sua publicidade. Os computadores oferecem uma radiografia de cada cidadão. Pode-se saber quais são os seus hábitos e os seus gostos e gastos, através do uso que cada cidadão faz do cartão de crédito, das caixas automáticas e do correio electrónico.
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De facto, isto é o que acontece de cada vez que nos países de mais alto desenvolvimento, onde a manipulação comercial do universo on line está a violar im­punemente a vida privada para a pôr ao serviço do mercado. Torna-se cada vez mais difícil, por exemplo, que um cidadão norte-americano possa manter em segredo as compras que faz, as doenças de que padece, o dinheiro que tem e o dinheiro que deve: a partir desses dados, não é assim tão difícil dedu­zir que novos serviços poderia contratar, em que novas dívi­das poderia meter-se e quantas novas coisas poderia comprar.Por muito que cada cidadão compre, será sempre pouco em relação com o muito que é necessário vender. Nestes últimos anos, por exemplo, a indústria automóvel está a fabricar mais carros do que a procura absorve. As grandes cidades latino-ame­ricanas compram mais e mais. Até onde? Há um tecto que não podem ultrapassar, submetidas como estão à contradição entre as ordens que recebe o mercado interno e as ordens que trans­mite o mercado internacional: a contradição entre a obsessão de consumir, que requer salários cada vez mais elevados, e a obrigação de competir, que exige salários cada vez mais baixos.
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A publicidade fala do automóvel, suponhamos, como uma bênção ao alcance de todos. Um direito universal, uma con­quista democrática? Se isto fosse verdade e todos os seres humanos pudessem transformar-se em feliz es proprietários des­te talismã de quatro rodas, o planeta sofreria de morte súbita por falta de ar. E, antes, deixaria de funcionar por falta de ener­gia. O mundo já queimou, num bocadinho, a maior parte do petróleo que se tinha formado ao longo de milhões de anos. Fabricam-se carros, um após outro, ao mesmo ritmo que as batidas do coracão e os carros estão a devorar mais de meta­de de todo o petróleo que o mundo produz anualmente.
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Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descar­tável; uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, logo após nascerem, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publi­cidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas, para que outro mundo nos vamos mudar? Estamos todos obrigados a acredi­tar na história de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque, estando mal-humorado, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para caçar parvos. Os que tem o manípulo simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria da pessoas consome pouco, pouquinho e nada necessa­riamente para garantir a existência da pouca Natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um de­feito a superar: é uma necessidade essencial. Não há Natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.Os presidentes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, um passe de mágica que nos transforma­ria a todos em prósperos membros do reino do esbanjamento, deveriam ser processados por burla e por apologia do crime. Por burla, porque prometem o impossível. Se todos consumíssemos como consomem os espremedores do mundo, ficaríamos sem mundo. E por apologia do crime: este modelo de vida que se nos oferece como grande orgasmo da vida, estes delírios do consumo que dizem ser a contra-senha da felicidade, estão a pôr­nos o corpo doente, estão a envenenar-nos a alma e estão a deixar-nos sem casa: aquela casa que o mundo quis ser quando ainda não era.

domingo, 31 de dezembro de 2006

Lições Contra os Vícios Inúteis

O desemprego multiplica a delinquência e os salários humilhantes estimulam-na. Nunca teve tan­ta actualidade o provérbio que diz: Ó esperto vive do tolo e o tolo do trabalho.) Em contrapartida, já ninguém diz, porque ninguém acreditaria, aquela conversa do trabalha e prosperarás.
O direito laboral está a reduzir-se ao direito de trabalhar pelo que quiserem pagar-te e nas condições que te quiserem impor. Não existe no mundo mer­cadoria mais barata do que a mão-de-obra. Enquanto caem os salários e aumentam os horários, o merca­do laboral vomita gente. Toma-o ou deixa-o, que a fila é comprida.
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Emprego e desemprego no tempo do medo
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A sombra do medo morde os calcanhares do mundo, que anda de um lado para o outro, aos tombos, a dar os últimos passos em direcção a este final de século. Medo de perder: perder o trabalho, perder o dinheiro, perder a comida, perder a casa, perder: não há exorcismo que possa proteger seja quem for da súbita maldição da má sorte. Até o mais ganhador pode, às duas por três, transformar-se em perdedor, um fracassado indigno de perdão e de compaixão.
Quem se salva do terror da desocupação? Quem não teme ser um náufrago das novas tecnologias, ou da globalização, ou de qualquer outro dos muitos mares revoltos do mundo ac­tual ? As ondas, furiosas, batem: a ruína ou a fuga das indús­trias locais, a concorrência de mão-de-obra mais barata de outras latitudes, ou o implacável avanço das máquinas que não exibem salário, nem férias, nem feriados, nem reforma, nem indemnização por despedimento, nada a não ser a electrici­dade que as alimentam.
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O desenvolvimento da tecnologia não está a servir para multiplicar o tempo de ócio e os espaços de liberdade, mas está sim a multiplicar a desocupação e a semear o medo. E universal o pânico perante a possibilidade de receber a carta que lamenta comunicar-lhe que nos vemos obrigados a prescindir dos seus serviços devido à nova política de custos, ou devido à inadiável reestruturação da empresa, ou porque sim, que nenhum eu­femismo alivia o fuzilamento. Qualquer um pode cair, em qualquer momento e em qualquer lugar; qualquer um pode transformar-se, de um dia para o outro, num velho de qua­renta anos.
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No seu relatório sobre os anos 96 e 97, diz a OIT, a Orga­nização Internacional do Trabalho, que «a evolução do em­prego no mundo continua a ser desanimadora». Nos países industrializados, o desemprego continua a ser muito alto e aumentam as desigualdades sociais, e, nos chamados países em desenvolvimento, verifica-se um progresso espectacular do desemprego, uma pobreza crescente e uma descida do nível de vida. «Daí que se propague o medo», conclui o relatório. E o medo propaga-se: o trabalho ou o nada. À entrada de Auschwitz, o campo de extermínio nazi, um grande cartaz dizia: O trabalho liberta. Mais de meio século depois, o funcionário ou o operário que tem trabalho deve agradecer o favor que alguma empresa lhe faz, permitindo-lhe perder a alma, dia após dia, carne de rotina, no escritório ou na fábrica. Encontrar trabalho, ou mantê-lo, embora sem férias, nem reforma, nem nada, e apesar de ser a troco de um salário de merda, festeja­-se como se fosse um milagre.
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São Caetano é o que mais gente congrega na Argentina. Acodem as multidões a implorar trabalho ao patrono dos desempregados. Nenhum outro santo nem santa tem tanta clien­tela. Entre Maio e Outubro de 97, apareceram novos postos de trabalho. Não se sabe se foi obra de São Caetano ou da democracia: vinham aí as eleições legislativas e o governo ar­gentino intimidou o santo repartindo meio milhão de empre­gos à direita e à esquerda. Mas os empregos, que pagavam salários de duzentos dólares por mês, duraram pouco mais do que a campanha eleitoral. Algum tempo depois, o presidente Menem aconselhou os argentinos a jogarem golfe, porque dis­trai e relaxa os nervos.
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Cada vez há mais desocupados no mundo. Sobra cada vez mais gente ao mundo. Que vão fazer os donos do mundo com tanta Humanidade inútil ? Vão mandá-la para a Lua? No iní­cio de 98, as gigantescas manifestações em França, Alemanha, Itália e outros países europeus, ocuparam as primeiras páginas da imprensa mundial. Alguns desempregados desfilaram me­tidos em sacos do lixo pretos: era a encenação do drama do trabalho no mundo actual. Na Europa ainda existem subsídios que aliviam a sina dos desocupados; mas o facto é que um em cada quatro jovens não arranja emprego fixo. O trabalho à socapa, à margem da lei, triplicou na Europa, no último quar­to de século. Na Grã-Bretanha, são cada vez mais numerosos os trabalhadores que permanecem em casa, sempre disponí­veis e sem receber nada, até o telefone tocar. Então trabalham uns tempos, ao serviço de uma agência de contratação. De­pois, voltam para casa e, sentados, esperam que o telefone to­que novamente.
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A globalização é uma cartola na qual as fábricas desapa­recem por artes de mágica, fugidas para os países pobres; a tecnologia, que reduz vertiginosamente o tempo de trabalho necessário para a produção de cada coisa, empobrece e sub­juga os trabalhadores em vez de os libertar da necessidade e da servidão; o trabalho deixou de ser imprescindível para a reprodução do dinheiro. São muitos os capitais desviados para os investimentos especulativos. Sem transformar a matéria, e sem sequer tocar nela, o dinheiro reproduz-se mais fecunda­mente a fazer amor consigo mesmo. A Siemens, uma das maiores empresas industriais do mundo, está a ganhar mais com os seus investimentos financeiros do que com as activi­dades produtivas.
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Nos Estados Unidos há muito menos desemprego que na Europa, mas os novos empregos são precários, mal pagos e sem protecção social. «Verifico-o entre os meus alunos-, diz Noam Chomsky. «Eles temem que, se não se portarem como deve ser, nunca conseguirão trabalho e isto tem um efeito discipli­nador.» Apenas um em cada dez trabalhadores tem o privilé­gio de ter um emprego permanente, a tempo inteiro, nas quinhentas empresas norte-americanas de maior dimensão. Em cada dez novos empregos disponibilizados na Grã-Bretanha, nove são precários. A história está a dar um salto de dois sé­culos, mas para trás: a maioria dos trabalhadores não tem, no mundo actual, estabilidade laboral nem direito a indemniza­ção por despedimento; e a insegurança laboral faz cair os sa­lários. Seis em cada dez norte-americanos recebem salários inferiores aos salários de há um quarto de século, apesar de nestes vinte e cinco anos a economia dos Estados Unidos ter crescido quarenta por cento.
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Apesar disto, milhares e milhares de trabalhadores braçais mexicanos, os espaldas mojadas, os costas molhadas, continuam a atravessar o rio da fronteira e continuam a arriscar a vida. Em duas décadas duplicou-se a brecha entre os salários dos Estados Unidos e os do México. A diferença era de quatro vezes; agora, é de oito. Como bem sabem os capitalistas que emigram para sul em busca de braços baratos, e como bem sabem os braços baratos que tentam emigrar para norte, o tra­balho é, no México, a única mercadoria que desce de preço mensalmente. Nestes últimos vinte anos, uma boa parte da classe média caiu na pobreza, os pobres caíram na miséria e os miseráveis caíram das estatísticas. A estabilidade dos que têm trabalho está garantida por lei, mas, de facto, depende da Virgem de Guadalupe.
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A precariedade do trabalho, factor principal, juntamente com o desemprego, para a crise dos salários, é universal como a gripe. Nem sequer os trabalhadores especializados nos secto­res mais sofisticados e dinâmicos da economia mundial respi­ram em paz. Também aí a contratação a prazo está a substituir velozmente os empregos fixos. Nas telecomunicações e na elec­trónica, já estão a funcionar as empresas virtuais, que precisam de muito pouca gente. As tarefas são executadas de compu­tador para computador, sem os trabalhadores se conhecerem entre si e sem conhecerem os empregadores, fugitivos fantas­mas que não devem obediência a nenhuma legislação nacional. Os profissionais altamente qualificados estão tão condenados à incerteza e à instabilidade no trabalho quanto qualquer outro, embora ganhem muito mais e embora sejam meninos mimados, sempre abstractos, pelas revistas que elogiam os milagres da tecnologia na era da felicidade universal.
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O medo da perda do emprego e a angústia de não o en­contrar não são alheios a um disparate registado pelas esta­tísticas e que só pode parecer normal num mundo que perdeu todos os parafusos. Nos últimos trinta anos, os horários de tra­balho declarados, que costumam ser inferiores aos horários reais, aumentaram significativamente nos Estados Unidos, Canadá e Japão, e apenas diminuíram, um pouco, nalguns países euro­peus. Este é um aleivoso atentado contra o senso comum le­vado a cabo pelo mnundo às avessas: o assombroso aumento da produtividade operado pela revolução tecnológica, não só não se traduz num aumento proporcional dos salários como nem sequer diminui os horários de trabalho nos países de mais alta tecnologia. Nos Estados Unidos, as frequentes sondagens in­dicam que o trabalho é, actualmente, a principal fonte de stress, muito acima dos divórcios e do medo da morte, e, no Japão, o karoslli, o excesso de trabalho, está a matar dez mil pessoas por ano.
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Quando o governo da França decidiu, em Maio de 98, re­duzir a semana laboral de 39 para 35 horas, dando assim uma elementar lição de bom senso, a medida desencadeou clamo­res de protesto entre empresários, políticos e tecnocratas. Na Suíça, que não tem problemas de desemprego, coube-me assistir, há algum tempo, a um acontecimento que me deixou pasmado. Um plebiscito propôs trabalhar menos horas sem diminuição dos salários e os suíços votaram contra. Lembro­-me que não percebi, confesso que ainda agora não percebo. O trabalho é uma obrigação universal desde que Deus con­denou Adão a ganhar o pão com o suor do rosto, mas não é preciso tomar a vontade divina tão a peito. Suspeito que este fervor laboral tem muito a ver com o terror do desemprego, embora, no caso da Suíça, o desemprego seja uma ameaça vaga e longínqua, e com o pânico do tempo livre. Ser é ser útil, para ser tem que se ser vendível. O tempo que não se traduz em dinheiro, tempo livre, tempo de vida vivida pelo prazer de viver e não pelo dever de produzir, gera medo. Ao fim e ao cabo, isto nada tem de novo. O medo foi sempre, juntamente com a cobiça, um dos dois motores mais activos do sistema que ou­trora se chamava capitalismo.
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O medo do desemprego permite que os direitos laborais sejam impunemente burlados. A jornada máxima de oito ho­ras já não pertence à ordem jurídica, mas sim ao âmbito lite­rário, onde brilha, entre outras, a poesia surrealista; e são já relíquias, dignas de serem exibidas em museus de arqueologia, as contribuições patronais para a reforma dos trabalhadores, a assistência médica, o seguro contra acidentes de trabalho, as férias pagas, o subsídio de Natal e as contribuições familia­res. Os direitos laborais, legalmente consagrados como tendo valor universal, tinham sido, noutros tempos, fruto de outros medos: o medo das greves de operários e medo da ameaça da revolução social, que tão ameaçadora parecia. Mas aquele poder assustado, o poder de ontem, é o poder que hoje em dia assusta, para ser obedecido. E assim se rifam, num instantinho, as conquistas operárias que custaram dois séculos.
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O medo, pai de família numerosa, também gera ódio. Nos países do Norte do Mundo, costuma traduzir-se em ódio aos estrangeiros que oferecem os braços a preços de desespero. É a invasão dos invadidos. Eles vêm das terras onde uma e mil vezes desembarcaram as tropas coloniais da conquista e as expedições militares de punição. Os que fazem, agora, esta via­gem ao contrário não são soldados obrigados a matar: são tra­balhadores obrigados a vender os braços na Europa ou no norte da América, seja a que preço for. Vêm da África, da Ásia, da América Latina e, nos últimos anos, depois da hecatombe do poder burocrático, também vêm do Leste europeu.
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Nos anos da grande expansão económica europeia e nor­te-americana, a prosperidade crescente exigia mais e mais mão­-de-obra e pouco importava que os braços fossem estrangei­ros, desde que trabalhassem muito e ganhassem pouco. Nos anos de recessão, ou de crescimento doente e ameaçado pela crise, os hóspedes inevitáveis tornaram-se intrusos indesejá­veis: cheiram mal, fazem barulho e tiram empregos. Esses trabalhadores, bodes expiatórios do desemprego e de todas as des­graças, estão também condenados ao medo.
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Várias espadas lhes pendem sobre a cabeça: a sempre iminente expulsão do país a que vieram parar, fugindo da vida dura, e a sempre possível explosão do racismo, as suas advertências sangrentas, os seus castigos: turcos queimados, árabes esfaqueados, negros balea­dos, mexicanos espancados. Os imigrantes pobres executam as tarefas mais pesadas e mais mal pagas, nos campos e nas ruas. Depois das horas de serviço, vêm as horas de perigo. Nenhu­ma tinta mágica os cobre para os tornar invisíveis.
Paradoxalmente, muitos trabalhadores do Sul do Mundo emigram para Norte, ou tentam contra ventos e marés essa aventura proibida, enquanto muitas fábricas do Norte emigram para o Sul. O dinheiro e as pessoas cruzam-se no caminho. O dinheiro dos países ricos viaja para os países pobres, atraí­do pelas jornadas de trabalho a um dólar e as jornadas sem horários, e os trabalhadores pobres viajam, ou quereriam via­jar, para os países ricos, atraídos pelas imagens de felicidade que a publicidade oferece ou a esperança inventa. O dinheiro viaja sem alfândegas e sem problemas; é recebido com beijos e flores e toques de trombetas. Os trabalhadores que emigram, pelo contrário, empreendem uma odisseia que, por vezes, ter­mina nas profundezas do Mediterrâneo ou do mar das Caraí­bas, ou nos rochedos do rio Bravo.
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Noutras épocas, enquanto Roma se apoderava de todo o Mediterrâneo e muito mais, os exércitos regressavam arrastan­do caravanas de prisioneiros de guerra. Esses prisioneiros trans­formavam-se em escravos e as caçadas de escravos empobreciam os trabalhadores livres. Quanto mais escravos havia em Roma, mais caíam os salários e mais difícil se tornava arranjar traba­lho. Dois mil anos mais tarde, o empresário argentino Enri­que Pescarmona fez um revelador louvor à globalização:
- Os asiáticos trabalham vinte horas por dia - declarou - por oitenta dólares por mês. Se quiser competir, tenho que recor­rer a eles. É o mundo globalizado. As raparigas filipinas, nos nos­sos escritórios de Hong Kong, estão sempre disponíveis. Não há sábados nem domingos. Se tiverem que fazer directas de vários dias sem dormir, fazem-no, e nunca cobram horas extraordinárias nem pedem nada.
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Meses antes desta elegia, tinha-se incendiado uma fábri­ca de bonecas em Banguecoque. As operárias, que ganhavam menos de um dólar por dia e que comiam e dormiam na fá­brica, morreram queimadas vivas. A fábrica estava fechada por fora, como os barracões no tempo da escravatura.
São numerosas as indústrias que emigram para os países pobres, à procura de braços, que os há baratíssimos e em abun­dância. Os governos desses países pobres dão as boas-vindas aos novos postos de trabalho, trazidos pelos messias do pro­gresso em bandeja de prata. Mas, em muitos desses países po­bres, o novo proletariado fabril labora em condições que evocam o nome que o trabalho tinha na época do Renas­cimento: tripalium, que era também o nome de um instrumento de tortura.0 preço de uma t-shirt com a imagem da princesa Pocahontas, vendida pela casa Disney, equivale ao salário de toda uma semana dos operários que coseu essa t-shirt no Haiti, a um ritmo de 375 t-shirts por hora.
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O Haiti foi o primeiro país do mundo a abolir a escravatura; e dois séculos depois desse feito, que muitos mortos custou, o país padece de escra­vatura assalariada. A cadeia McDonald's oferece brinquedos aos seus clientes infantis. Esses brinquedos são fabricados no Vietname, onde as operárias trabalham dez horas seguidas, com alpendres fechados a sete chaves, a troco de oitenta cêntimos. O Vietname tinha derrotado a invasão militar dos Estados Uni­dos; e um quarto de século depois daquele feito, que muitos mortos custou, o país padece de humilhação globalizada.
Por cada milhão de violações da lei que os inspectores cons­tatam em França, apenas treze são alvo de condenação no fi­nal dos processos. E, em quase todos os casos, a condenação consiste no pagamento de uma multa ridícula.
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A caçada aos braços já não carece de exércitos, como acon­tecia nos tempos coloniais. Disso se encarrega, sozinha, a mi­séria de que padece a maior parte do planeta. E a morte da Geografia: os capitais atravessam fronteiras à velocidade da luz, por obra e graça das novas tecnologias da comunicação e dos transportes, que eliminaram o tempo e as distâncias. E quan­do uma economia arrefece nalgum lugar do planeta," outras 77, economias espirram do outro lado do inundo.Em finais de 97 a desvalorização da moeda na Malásia implicou o sacrifício de milhares de postos de trabalho na indústria do calçado do sul do Brasil.
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Os países pobres estão metidos, de alma e coração, no con­curso universal do bom comportamento, para ver quem ofe­rece salários mais raquíticos e maior liberdade para envenenar o meio ambiente. Os países competem entre eles, mano a mano, para seduzir as grandes empresas multinacionais. As melhores condições para as empresas são as piores condições para o nível dos salários, da segurança no trabalho e da saúde da Terra e das pessoas. Ao longo e ao largo do mundo, os di­reitos dos trabalhadores estão a ser nivelados para baixo, en­quanto a mão-de-obra disponível se multiplica como nunca antes, nem nas piores épocas, tinha acontecido.
«A globalização tem ganhadores e perdedores», adverte um relatório das Nações Unidas. «Supõe-se que uma maré de ri­queza em ascensão levantará todos os barcos. Mas alguns po­dem navegar melhor que outros. Os iates e os transoceânicos estão de facto a levantar-se, em resposta às novas oportuni­dades, mas as balsas e os barcos a remos estão a meter água e alguns estão a afundar-se rapidamente». Os países tremem perante a possibilidade de que o dinheiro não venha, ou de que o dinheiro fuja. O naufrágio é uma realidade ou uma amea­ça que se traduz em pânico generalizado. Se não se portarem bem, dizem as empresas, vamos para as Filipinas, ou para a Tailândia, ou para a Indonésia, ou para a China, ou para Marte. Portar-se mal significa: defender a Natureza ou o que resta dela, reconhecer o direito à constituição de sindicatos, exigir o res­peito das normas internacionais e das leis locais, aumentar o salário mínimo.
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Em 1995, a cadeia de lojas GAP vendia, nos Estados Uni­dos, camisas made in El Salvador. Por cada camisola vendida a vinte dólares, os operários salvadorenhos recebiam 18 cênti­mos. Os operários, ou, melhor dizendo, as operárias, porque eram maioritariamente mulheres e crianças, que se matavam a trabalhar mais de catorze horas por dia no inferno das ofici­nas, organizaram um sindicato. A empresa contratista despe­diu trezentas e cinquenta. Veio a greve. Houve espancamentos da polícia, raptos, prisões. Em finais de 95, as lojas GAP anun­ciaram que se iam embora para a Ásia.
Na América Latina, a nova realidade do mundo traduz­-se num crescimento vertical do chamado sector informal da economia. O sector informal que, traduzido, significa trabalho à margem da lei, oferece 85 em cada novos cem postos de trabalho. Os trabalhadores fora da lei trabalham mais, ganham menos, não têm benefícios sociais e não se encontram prote­gidos pelas garantias laborais conquistadas em longos anos, duros anos, de luta sindical. E também não é muito melhor a situação dos trabalhadores legais: desregulamentação e flexibili­zação são os eufemismos que definem unia situação na qual cada um tem que se desenrascar como puder. Esta situação foi definida de forma certeira por uma velha operária paraguaia, que me comentou, a propósito da sua reforma de miséria:
- Se este é o prémio, como será o castigo!
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Jorge Bermúdez tem três filhos e três empregos. Ao rom­per da manhã, sai para percorrer as ruas da cidade de Quito num velho Chevrolet que faz de táxi. Desde as primeiras ho­ras da tarde, dá aulas de inglês. Há dezasseis anos que é pro­fessor numa escola pública, onde ganha cento e cinquenta dólares por mês. Quando acaba a jornada na escola pública, começa numa escola privada, até à meia-noite. Jorge Bermúdez não tem nenhum dia livre. Desde há tempos que sofre de ardores no estômago e anda mal-humorado e com pouca pa­ciência. Um psicólogo explicou-lhe que essas maleitas eram psicossomáticas e perturbações de comportamento derivadas do excesso de trabalho e recomendou-lhe que abandonasse dois dos seus três empregos para restabelecer a sanidade físi­ca e mental. O psicólogo não lhe explicou o que fazer para chegar ao fim do mês.
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No mundo às avessas, a educação não compensa. O ensi­no público latino-americano é um dos sectores mais castiga­dos pela nova situação laboral. Os professores recebem elogios, a retórica bacoca dos discursos que exaltam o labor abnegado dos apóstolos da docência que, amorosamente, moldam com as mãos o barro das novas gerações; e, além disso, ganham salários que só se vêem à lupa. 0 Banco Mundial chama à educação «um investimento em capital humano», o que cons­titui, do seu ponto de vista, uma homenagem; mas, num re­latório recente, propõe, como possibilidade, reduzir os salários da classe docente nos países onde «a oferta de professores» permita manter o nível docente.
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Reduzir os salários? Que salários? ,Pobres, mas docentes,,, diz-se no Uruguai, e também: «Tenho mais fome do que um mestre-escola.» Os professores universitários estão na mesma. Em meados de 95, li na imprensa um anúncio de um concur­so da Faculdade de Psicologia de Montevideu. Era preciso um professor de Ética, ofereciam-se cem dólares por mês. Pensei que tinha que se ser um mágico da ética para não se corrom­per com semelhante fortuna.

sábado, 30 de dezembro de 2006

Os Alunos

Dia após dia, nega-se às crianças o direito a serem crianças. Os factos, que troçam deste direito, ministram os seus ensinamentos na vida quotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se habituem a agir como age o dinheiro. O Mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E aos do meio, aos meninos que não são ricos nem pobres, tem-nos atados aos pés do televisor, para que desde muito cedo aceitem, como destino, a vida prisioneira; Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguirem ser crianças.
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Os de cima, os de baixo e os do meio
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No oceano do desamparo, erguem-se ilhas de privilégio. São luxuosos campos de concentração, onde os poderosos se encontram com os poderosos e nunca podem esquecer, nem por um momento, que são poderosos. Em algumas das gran­des cidades latino-americanas, os raptos tornaram-se hábito e as crianças ricas crescem encerradas dentro da bolha do medo. Habitam mansões amuralhadas, grandes casas ou gru­pos de casas rodeadas de cercas electrificadas e de guardas ar­mados, e são vigiadas dia e noite pelos guarda-costas e pelas câmaras de circuitos fechados de segurança. As crianças ricas viajam, tal como o dinheiro, em veículos blindados. Descobrem o metropolitano em Paris ou em Nova Iorque, mas nunca o usam em São Paulo ou na capital do México.
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Elas não vivem nas cidades onde vivem. Está-lhes vedado esse vasto inferno que ameaça o seu minúsculo céu privado. Para além das fronteiras, estende-se uma região de terror onde as pessoas são muitas, feias, sujas e invejosas. Em plena era da globalização, as crianças já não pertencem a lugar algum, mas as que menos lugar têm são as que mais coisas têm: crescem sem raízes, despojadas de identidade cultural e sem mais sen­tido social do que a certeza de que a realidade é um perigo. A sua pátria está nas marcas de prestígio universal que dis­tinguem as suas roupas e tudo aquilo que usam, e a sua lin­guauem é a linguagem dos códigos electrónicos internacionais. Nas mais diversas cidades e nos mais distantes lugares do mundo, os filhos dos privilegiados parecem-se entre si, em costumes e tendências, como se parecem entre si os shopping centers e os aeroportos, que se encontram fora do tempo e do espaço. Educados na realidade virtual, são deseducados na ignorãn­cia da realidade real, que apenas existe para ser temida ou comprada.
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Fast food, fast cars, fast life: desde que nascem, as crianças ricas são treinadas para o consumo e para a fugacidade e pas­sam a infância a provar que as máquinas são mais dignas de confiança do que as pessoas. Quando chegar o momento do ritual de iniciação, ser-lhes-á oferecida a primeira armadura todo-o-terreno, com tracção às quatro rodas. Durante os anos de espera, lançam-se a toda a velocidade nas auto-estradas ci­bernéticas e confirmam a sua identidade devorando imagens e mercadorias, fazendo zaapping e fazendo shopping. As ciber­crianças navegam pelo ciberespaço com o mesmo à-vontade com que as crianças abandonadas deambulam pelas ruas das cidades.
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Muito antes de as crianças ricas deixarem de ser crianças e descobrirem as drogas que atordoam a solidão e mascaram o medo, já as crianças pobres inalam gasolina ou cola. Enquan­to as crianças ricas brincam às guerras com balas de raios laser, já as balas de chumbo ameaçam os meninos de rua.Na América Latina, as crianças e os adolescentes consti­tuem quase metade da população total. Metade dessa metade vive na miséria.
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Sobreviventes: na América Latina morrem, por hora, cem crianças de fome ou de doença curável, mas há cada vez mais crianças pobres nas ruas e nos campos desta região que fabrica pobres e proíbe a pobreza. São crianças a maio­ria de todos os pobres; e são pobres, maioritariamente, as crianças. E, de todos os reféns do sistema, são as crianças as que vivem pior. A sociedade espreme-as, vigia-as, castiga-as e às vezes mata-as: quase nunca as ouve, nunca as compreende.
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Estas crianças, filhas de pessoas que trabalham tempora­riamente e que não têm nem trabalho nem lugar no mundo, são obrigadas, desde muito cedo, a viver ao serviço de qual­quer actividade de ganha-pão, esmifrando-se em troca de comida ou de pouco mais, a todo o comprimento e a toda a largura do mapa do mundo. Depois de aprender a caminhar, aprendem quais as recompensas que se dão aos pobres que se portam bem: eles, e elas, são a mão-de-obra gratuita das ofi­cinas, das lojas e das cantinas caseiras, ou são a mão-de-obra ao preço da chuva das indústrias de exportação que fabricam roupa desportiva para as grandes empresas multinacionais.
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Tra­balham nas fainas agrícolas ou nas distribuições urbanas, ou trabalham em casa ao serviço de quem aí mandar. São peque­nos escravos ou escravas da economia familiar ou do sector in­formal da economia globalizada, onde ocupam o mais baixo escalão da população activa ao serviço do mercado mundial:
nas lixeiras da Cidade do México, Manila ou Lagos, jun­tam vidros, latas e papéis, e disputam os restos de comida com os abutres; mergulham no mar de Java à procura de pérolas; procuram diamantes nas minas do Congo; são toupeiras nas galerias das minas do Peru, imprescindí­veis pela sua pequena estatura, e, quando os seus pulmões não dão mais, vão parar aos cemitérios clandestinos; cultivam café na Colômbia e na Tanzânia e são envene­nadas com pesticidas; são envenenadas com os pesticidas das plantações de al­godão da Guatemala e nos bananais das Honduras; na Malásia recolhem o látex das árvores da borracha, em jornadas de trabalho que vão de sol a sol; constroem vias ferroviárias na Birmânia; no Norte da índia, derretem nos fornos de vidro, e no Sul nos fornos de tijolo;no Bangladesh, desempenham mais de trezentas ocupações diferentes, com salários que oscilam entre o nada e o quase nada por dia sem fim; participam em corridas de camelos para os emires árabes e são ginetes pastores nas quintas de Río de la Plata; em Port-au-Prince, Colombo, Jacarta ou Recife, servem à mesa do patrão, em troca do direito a comer aquilo que cai da mesa; vendem fruta nos mercados de Bogotá e vendem pastilhas elásticas nos autocarros de São Paulo; limpam pára-brisas nas esquinas de Lima, Quito ou San Salvador; engraxam sapatos nas ruas de Caracas ou Guanajuato; cosem roupa na Tailândia e chuteiras no Vietname; cosem bolas de futebol no Paquistão e bolas de basebol nas Honduras ou no Haiti; para pagar as dívidas dos pais, colhem chá ou tabaco nas plantações do Sri Lanka e cultivam jasmins, no Egipto, com destino à perfumaria francesa; alugadas pelos pais, tecem carpetes no Irão, Nepal e índia, desde antes do amanhecer até depois da meia-noite, e quando chega alguém para as resgatar, perguntam: «O se­nhor é o meu novo amo ? Vendidas a cem dólares pelos pais, oferecem-se no Sudão para todo o tipo de tarefas sexuais ou para todo o serviço.
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Os exércitos recrutam a força crianças, em alguns pontos da África, do Médio Oriente e da América Latina. Nas guer­ras, os soldadinhos trabalham a matar e, sobretudo, trabalham a morrer: constituem metade das vítimas nas guerras africa­nas recentes. Com excepção da guerra, que, conforme conta a tradição e ensina a realidade, é coisa de machos, em quase todas as restantes tarefas os braços das meninas revelam-se tão úteis quanto os braços dos meninos. Mas o mercado laboral reproduz nas meninas a discriminação que normalmente pra­tica contra as mulheres; elas, as meninas, ganham sempre menos do que o pouquíssimo que eles, os meninos, ganham, quando ganham alguma coisa.
A prostituição é desde cedo o destino de muitas meninas e, em menor escala, também de uns quantos meninos, em todo o mundo. Por assombroso que pareça, calcula-se que existem pelo menos cem mil prostitutas infantis nos Estados Unidos, segundo o relatorio da UNICEF de 1997.
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Mas é nos bordéis rentáveis e nunca o serão. Do ponto de vista da ordem esta­belecida, começam a roubar o ar que respiram e depois rou­bam tudo o que lhes aparece à frente. Entre o berço e a sepultura, a fome ou as balas costumam interromper-lhes a viagem. O mesmo sistema produtivo que despreza os velhos teme as crianças. A velhice é um fracasso, a infância é um perigo. Cada vez há mais crianças marginais que nascem com tendência para o crirne, no dizer de alguns especialistas. Elas integram o sector mais ameaçador dos excedentes de população. A criança como perigo público, a conduta anti-social do menor na América, é o tema recorrente dos Congressos Pan-Ameri­canos da Criança, desde há uns tantos anos a esta parte.
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As crianças que vêm do campo para a cidade, e as crianças po­bres em geral, têm um comportamento potencialmente anti-social, de acordo com as advertências dos Congressos desde 1963. Os governos e alguns peritos no assunto partilham a obsessão pelas crianças doentes de violência, orientadas para o vício e para a perdição. Cada criança contém uma possível corrente do El Nino e é preciso prevenir a devastação que pode provocar. No primeiro Congresso Policial Sul-Americano, celebrado em Montevideu em 1979, a polícia colombiana explicou que «o aumento cada vez maior da população de menos de dezoito anos induz à estimativa de uma maior população POTENCIAL MENTE DELINQUENTE- (maiúsculas do documento original).
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Nos países latino-americanos, a hegemonia do mercado está a destruir os laços de solidariedade e a destroçar o tecido social coniunitária Que destino têm os ninguéns, os donos de nada, em países onde o direito de propriedade está a trans­formar-se no único direito? E os filhos dos ninguéns ? A mui­tos, que são cada vez mais, a fome empurra-os para o roubo, a mendicidade e a prostituição; e a sociedade de consumo insulta-os oferecendo aquilo que lhes nega. E eles vingam-se, lançando-se ao assalto, bando de desesperados unidos pela certeza da morte que os espera: segundo a UNICEF, em 1995 havia oito milhões de crianças abandonadas, meninos de rua, nas grandes cidades latino-americanas; segundo a organização Human Rights Watch, em 1993 os esquadrões parapoliciais assassinaram seis crianças por dia na Colômbia e quatro no Brasil.
Entre um extremo e outro, o meio. Entre as crianças que vivem prisioneiras da opulência e as que vivem desamparadas, estão as crianças que têm bastante mais que nada, mas muito menos que tudo.E são cada vez menos livres as crianças da classe média. «Que te deixem ser ou que não te deixem ser, eis a questão», soube dizer Chunny Chíunez, humorista espa­nhol. A estas crianças a liberdade é confiscada, dia após dia, pela sociedade que sacraliza a ordem enquanto gera a desor­dem. O medo do medo: o chão range debaixo dos pés, já não há garantias, a estabilidade é instável, evaporam-se os empre­gos, desvanece-se o dinheiro, chegar ao fim do mês é uma façanha. Bem-vinda, classe média, saúda um carta- à entrada de um dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires.
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A classe média continua a viver em estado de logro, fingindo que cum­pre as leis e que acredita nelas e simulando ter mais do que aquilo que tem; mas nunca lhe foi tão difícil cumprir esta abnegada tradição. A classe média encontra-se asfixiada pe­las dívidas e paralisada pelo pânico, e no pânico cria os seus filhos. Pânico de viver, pânico de cair; pânico de perder o tra­balho, o carro, a casa, as coisas, pânico de não chegar a ter o que se deve ter para se chegar a ser. No clamor colectivo pela segurança pública, ameaçada pelos monstros do crime que espreita, a classe média é aquela que grita mais alto. Defende a ordem como se fosse a sua proprietária, embora não seja mais do que uma inquilina esmagada pelo preço do aluguer e pela ameaça de despejo.
Apanhadas nas armadilhas do pânico, as crianças da clas­se média estão cada vez mais condenadas à humilhação da prisão perpétua.', Na cidade do futuro, que é já a cidade do presente, as telecrianças, vigiadas por amas electrónicas, con­templarão a rua a partir de alguma janela das suas telecasas: a rua interdita pela violência ou pelo pavor à violência, a rua onde acontece o sempre perigoso e, por vezes prodigioso, es­pectáculo da vida­.

Educando pelo Medo

A escola do mundo às avessas é a mais demo¬crática das instituições educativas. Não exige exame de admissão, não cobre matrícula e ministra os seus cursos gratuitamente, a todos e em qualquer lugar, assim na terra como no céu: por alguma razão é filha do sistema que conquistou, pela primeira vez em toda a história da Humanidade, o poder universal. Na escola do mundo às avessas, o chumbo aprende de a flutuar e a cortiça a afundar-se. As víboras aprendem a voar e as nuvens aprendem a rastejar pelos caminhos.
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Os modelos do êxito
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O mundo às avessas premeia às avessas: despreza a hones­tidade, pune o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Os seus mestres caluniam a nature­za: a injustiça, dizem, é a lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais prestigiados do corpo docente, fala da «taxa natural de desemprego». Por lei natural, provam Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros encontram-se nos de­graus mais baixos da escala social. Para explicar o êxito dos seus negócios, John D. Rockfeller costumava dizer que a na­tureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis; e mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam a acreditar que Charles Darwin escreveu os seus livros para anunciar a glória deles.
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Sobrevivência dos mais aptos' A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassi­no, é virtude humana quando serve para que as grandes empresas digiram as pequenas e para que os países fortes devo­rem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando qual­quer pobre tipo sem trabalho sai à procura de comida com uma faca na mão. Os doentes da patologia anti-social, loucura e perigo que cada pobre contém, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. Os delinquentes da treta aprendem o que sabem levantando o olhar, a partir de baixo em direcção aos cumes; estudam o exemplo dos triunfadores e, na medida do possível, fazem o que podem para lhes imitarem os méritos. Mas «os lixados estarão sempre lixados», como dizia Emilio Azcárraga, que foi ame) e senhor da televisão mexicana. As pos­sibilidades de um banqueiro que esvazia um banco possa des­frutar, em paz, dos frutos do seu trabalho são directamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão rouba um banco vá parar à prisão ou ao cemitério.
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Quando um delinquente mata por alguma dívida por pa­gar, a execução chama-se ajuste de contas; chama-se plano de ajustamento a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional decide liquidá-lo. A malfeitoria fi­nanceira sequestra os países e limpa-os se não pagarem o res­gate; quando comparados, qualquer bandido se revela mais inofensivo do que Drácula debaixo do sol. A economia mun­dial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os or­ganismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres, e contra todos os pobres de todos os países, com uma frieza pro­fissional e uma impunidade que humilham o melhor dos bom­bistas.
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A arte de enganar o próximo, que os vigaristas praticam caçando desprevenidos pelas ruas, chega ao sublime quando alguns políticos de êxito exercitam o seu talento. Nos subúr­bios do mundo, os chefes de Estado vendem os restos de colec­ção e os retalhos dos seus países a preço de liquidação de final de temporada, tal como nos subúrbios das cidades os de­linquentes vendem, a preço vil, o produto dos seus assaltos.
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Os pistoleiros que são contratados para matar realizam, em pequena escala, o mesmo serviço que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes que são elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes, à coca nas es­quinas, desferem golpes que são a versão artesanal dos golpes de sorte assestados pelos grandes especuladores que espoliam multidões a golpes de computador. Os violadores que mais ferozmente violam a Natureza e os direitos humanos nunca são presos. Têm as chaves das cadeias.
No mundo tal como está, o mundo às avessas, os países que custeiam a paz universal são aqueles que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos restantes países; os bancos mais prestigiados são os que mais narcodólares lavam e os que mais dinheiro roubado guardam; as indústrias mais florescentes são as que mais envenenam o planeta; e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impu­nidade e felicitações os que matam mais gente em menos tem­po, os que ganham mais dinheiro com menos trabalho e os que destroem a maior quantidade de Natureza com menos custos.
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Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas gran­des cidades do mundo às avessas. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem pela an­siedade de ter as coisas que não têm e outros não dormem pelo pânico de perderem as coisas que têm. O mundo às avessas treina-nos para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, reduz-nos à solidão e consola-nos com drogas químicas e com amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de tédio, se uma bala perdida não nos abreviar a exis­tência.
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Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre estas ameaças de desgraça, a nossa única liberdade possível ? O mun­do às avessas ensina-nos a padecer a realidade em vez de a mudar, a esquecer o passado em vez de o ouvir e a aceitar o futuro em vez de o imaginar: assim age o crime e assim o re­comenda. Na sua escola, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem medalha que não tenha reverso, nem tempestade que não traga bonança, nem desâ­nimo que não procure ânimo. Também não há escola que não encontre a sua contra-escola.