domingo, 31 de dezembro de 2006

Lições Contra os Vícios Inúteis

O desemprego multiplica a delinquência e os salários humilhantes estimulam-na. Nunca teve tan­ta actualidade o provérbio que diz: Ó esperto vive do tolo e o tolo do trabalho.) Em contrapartida, já ninguém diz, porque ninguém acreditaria, aquela conversa do trabalha e prosperarás.
O direito laboral está a reduzir-se ao direito de trabalhar pelo que quiserem pagar-te e nas condições que te quiserem impor. Não existe no mundo mer­cadoria mais barata do que a mão-de-obra. Enquanto caem os salários e aumentam os horários, o merca­do laboral vomita gente. Toma-o ou deixa-o, que a fila é comprida.
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Emprego e desemprego no tempo do medo
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A sombra do medo morde os calcanhares do mundo, que anda de um lado para o outro, aos tombos, a dar os últimos passos em direcção a este final de século. Medo de perder: perder o trabalho, perder o dinheiro, perder a comida, perder a casa, perder: não há exorcismo que possa proteger seja quem for da súbita maldição da má sorte. Até o mais ganhador pode, às duas por três, transformar-se em perdedor, um fracassado indigno de perdão e de compaixão.
Quem se salva do terror da desocupação? Quem não teme ser um náufrago das novas tecnologias, ou da globalização, ou de qualquer outro dos muitos mares revoltos do mundo ac­tual ? As ondas, furiosas, batem: a ruína ou a fuga das indús­trias locais, a concorrência de mão-de-obra mais barata de outras latitudes, ou o implacável avanço das máquinas que não exibem salário, nem férias, nem feriados, nem reforma, nem indemnização por despedimento, nada a não ser a electrici­dade que as alimentam.
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O desenvolvimento da tecnologia não está a servir para multiplicar o tempo de ócio e os espaços de liberdade, mas está sim a multiplicar a desocupação e a semear o medo. E universal o pânico perante a possibilidade de receber a carta que lamenta comunicar-lhe que nos vemos obrigados a prescindir dos seus serviços devido à nova política de custos, ou devido à inadiável reestruturação da empresa, ou porque sim, que nenhum eu­femismo alivia o fuzilamento. Qualquer um pode cair, em qualquer momento e em qualquer lugar; qualquer um pode transformar-se, de um dia para o outro, num velho de qua­renta anos.
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No seu relatório sobre os anos 96 e 97, diz a OIT, a Orga­nização Internacional do Trabalho, que «a evolução do em­prego no mundo continua a ser desanimadora». Nos países industrializados, o desemprego continua a ser muito alto e aumentam as desigualdades sociais, e, nos chamados países em desenvolvimento, verifica-se um progresso espectacular do desemprego, uma pobreza crescente e uma descida do nível de vida. «Daí que se propague o medo», conclui o relatório. E o medo propaga-se: o trabalho ou o nada. À entrada de Auschwitz, o campo de extermínio nazi, um grande cartaz dizia: O trabalho liberta. Mais de meio século depois, o funcionário ou o operário que tem trabalho deve agradecer o favor que alguma empresa lhe faz, permitindo-lhe perder a alma, dia após dia, carne de rotina, no escritório ou na fábrica. Encontrar trabalho, ou mantê-lo, embora sem férias, nem reforma, nem nada, e apesar de ser a troco de um salário de merda, festeja­-se como se fosse um milagre.
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São Caetano é o que mais gente congrega na Argentina. Acodem as multidões a implorar trabalho ao patrono dos desempregados. Nenhum outro santo nem santa tem tanta clien­tela. Entre Maio e Outubro de 97, apareceram novos postos de trabalho. Não se sabe se foi obra de São Caetano ou da democracia: vinham aí as eleições legislativas e o governo ar­gentino intimidou o santo repartindo meio milhão de empre­gos à direita e à esquerda. Mas os empregos, que pagavam salários de duzentos dólares por mês, duraram pouco mais do que a campanha eleitoral. Algum tempo depois, o presidente Menem aconselhou os argentinos a jogarem golfe, porque dis­trai e relaxa os nervos.
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Cada vez há mais desocupados no mundo. Sobra cada vez mais gente ao mundo. Que vão fazer os donos do mundo com tanta Humanidade inútil ? Vão mandá-la para a Lua? No iní­cio de 98, as gigantescas manifestações em França, Alemanha, Itália e outros países europeus, ocuparam as primeiras páginas da imprensa mundial. Alguns desempregados desfilaram me­tidos em sacos do lixo pretos: era a encenação do drama do trabalho no mundo actual. Na Europa ainda existem subsídios que aliviam a sina dos desocupados; mas o facto é que um em cada quatro jovens não arranja emprego fixo. O trabalho à socapa, à margem da lei, triplicou na Europa, no último quar­to de século. Na Grã-Bretanha, são cada vez mais numerosos os trabalhadores que permanecem em casa, sempre disponí­veis e sem receber nada, até o telefone tocar. Então trabalham uns tempos, ao serviço de uma agência de contratação. De­pois, voltam para casa e, sentados, esperam que o telefone to­que novamente.
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A globalização é uma cartola na qual as fábricas desapa­recem por artes de mágica, fugidas para os países pobres; a tecnologia, que reduz vertiginosamente o tempo de trabalho necessário para a produção de cada coisa, empobrece e sub­juga os trabalhadores em vez de os libertar da necessidade e da servidão; o trabalho deixou de ser imprescindível para a reprodução do dinheiro. São muitos os capitais desviados para os investimentos especulativos. Sem transformar a matéria, e sem sequer tocar nela, o dinheiro reproduz-se mais fecunda­mente a fazer amor consigo mesmo. A Siemens, uma das maiores empresas industriais do mundo, está a ganhar mais com os seus investimentos financeiros do que com as activi­dades produtivas.
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Nos Estados Unidos há muito menos desemprego que na Europa, mas os novos empregos são precários, mal pagos e sem protecção social. «Verifico-o entre os meus alunos-, diz Noam Chomsky. «Eles temem que, se não se portarem como deve ser, nunca conseguirão trabalho e isto tem um efeito discipli­nador.» Apenas um em cada dez trabalhadores tem o privilé­gio de ter um emprego permanente, a tempo inteiro, nas quinhentas empresas norte-americanas de maior dimensão. Em cada dez novos empregos disponibilizados na Grã-Bretanha, nove são precários. A história está a dar um salto de dois sé­culos, mas para trás: a maioria dos trabalhadores não tem, no mundo actual, estabilidade laboral nem direito a indemniza­ção por despedimento; e a insegurança laboral faz cair os sa­lários. Seis em cada dez norte-americanos recebem salários inferiores aos salários de há um quarto de século, apesar de nestes vinte e cinco anos a economia dos Estados Unidos ter crescido quarenta por cento.
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Apesar disto, milhares e milhares de trabalhadores braçais mexicanos, os espaldas mojadas, os costas molhadas, continuam a atravessar o rio da fronteira e continuam a arriscar a vida. Em duas décadas duplicou-se a brecha entre os salários dos Estados Unidos e os do México. A diferença era de quatro vezes; agora, é de oito. Como bem sabem os capitalistas que emigram para sul em busca de braços baratos, e como bem sabem os braços baratos que tentam emigrar para norte, o tra­balho é, no México, a única mercadoria que desce de preço mensalmente. Nestes últimos vinte anos, uma boa parte da classe média caiu na pobreza, os pobres caíram na miséria e os miseráveis caíram das estatísticas. A estabilidade dos que têm trabalho está garantida por lei, mas, de facto, depende da Virgem de Guadalupe.
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A precariedade do trabalho, factor principal, juntamente com o desemprego, para a crise dos salários, é universal como a gripe. Nem sequer os trabalhadores especializados nos secto­res mais sofisticados e dinâmicos da economia mundial respi­ram em paz. Também aí a contratação a prazo está a substituir velozmente os empregos fixos. Nas telecomunicações e na elec­trónica, já estão a funcionar as empresas virtuais, que precisam de muito pouca gente. As tarefas são executadas de compu­tador para computador, sem os trabalhadores se conhecerem entre si e sem conhecerem os empregadores, fugitivos fantas­mas que não devem obediência a nenhuma legislação nacional. Os profissionais altamente qualificados estão tão condenados à incerteza e à instabilidade no trabalho quanto qualquer outro, embora ganhem muito mais e embora sejam meninos mimados, sempre abstractos, pelas revistas que elogiam os milagres da tecnologia na era da felicidade universal.
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O medo da perda do emprego e a angústia de não o en­contrar não são alheios a um disparate registado pelas esta­tísticas e que só pode parecer normal num mundo que perdeu todos os parafusos. Nos últimos trinta anos, os horários de tra­balho declarados, que costumam ser inferiores aos horários reais, aumentaram significativamente nos Estados Unidos, Canadá e Japão, e apenas diminuíram, um pouco, nalguns países euro­peus. Este é um aleivoso atentado contra o senso comum le­vado a cabo pelo mnundo às avessas: o assombroso aumento da produtividade operado pela revolução tecnológica, não só não se traduz num aumento proporcional dos salários como nem sequer diminui os horários de trabalho nos países de mais alta tecnologia. Nos Estados Unidos, as frequentes sondagens in­dicam que o trabalho é, actualmente, a principal fonte de stress, muito acima dos divórcios e do medo da morte, e, no Japão, o karoslli, o excesso de trabalho, está a matar dez mil pessoas por ano.
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Quando o governo da França decidiu, em Maio de 98, re­duzir a semana laboral de 39 para 35 horas, dando assim uma elementar lição de bom senso, a medida desencadeou clamo­res de protesto entre empresários, políticos e tecnocratas. Na Suíça, que não tem problemas de desemprego, coube-me assistir, há algum tempo, a um acontecimento que me deixou pasmado. Um plebiscito propôs trabalhar menos horas sem diminuição dos salários e os suíços votaram contra. Lembro­-me que não percebi, confesso que ainda agora não percebo. O trabalho é uma obrigação universal desde que Deus con­denou Adão a ganhar o pão com o suor do rosto, mas não é preciso tomar a vontade divina tão a peito. Suspeito que este fervor laboral tem muito a ver com o terror do desemprego, embora, no caso da Suíça, o desemprego seja uma ameaça vaga e longínqua, e com o pânico do tempo livre. Ser é ser útil, para ser tem que se ser vendível. O tempo que não se traduz em dinheiro, tempo livre, tempo de vida vivida pelo prazer de viver e não pelo dever de produzir, gera medo. Ao fim e ao cabo, isto nada tem de novo. O medo foi sempre, juntamente com a cobiça, um dos dois motores mais activos do sistema que ou­trora se chamava capitalismo.
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O medo do desemprego permite que os direitos laborais sejam impunemente burlados. A jornada máxima de oito ho­ras já não pertence à ordem jurídica, mas sim ao âmbito lite­rário, onde brilha, entre outras, a poesia surrealista; e são já relíquias, dignas de serem exibidas em museus de arqueologia, as contribuições patronais para a reforma dos trabalhadores, a assistência médica, o seguro contra acidentes de trabalho, as férias pagas, o subsídio de Natal e as contribuições familia­res. Os direitos laborais, legalmente consagrados como tendo valor universal, tinham sido, noutros tempos, fruto de outros medos: o medo das greves de operários e medo da ameaça da revolução social, que tão ameaçadora parecia. Mas aquele poder assustado, o poder de ontem, é o poder que hoje em dia assusta, para ser obedecido. E assim se rifam, num instantinho, as conquistas operárias que custaram dois séculos.
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O medo, pai de família numerosa, também gera ódio. Nos países do Norte do Mundo, costuma traduzir-se em ódio aos estrangeiros que oferecem os braços a preços de desespero. É a invasão dos invadidos. Eles vêm das terras onde uma e mil vezes desembarcaram as tropas coloniais da conquista e as expedições militares de punição. Os que fazem, agora, esta via­gem ao contrário não são soldados obrigados a matar: são tra­balhadores obrigados a vender os braços na Europa ou no norte da América, seja a que preço for. Vêm da África, da Ásia, da América Latina e, nos últimos anos, depois da hecatombe do poder burocrático, também vêm do Leste europeu.
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Nos anos da grande expansão económica europeia e nor­te-americana, a prosperidade crescente exigia mais e mais mão­-de-obra e pouco importava que os braços fossem estrangei­ros, desde que trabalhassem muito e ganhassem pouco. Nos anos de recessão, ou de crescimento doente e ameaçado pela crise, os hóspedes inevitáveis tornaram-se intrusos indesejá­veis: cheiram mal, fazem barulho e tiram empregos. Esses trabalhadores, bodes expiatórios do desemprego e de todas as des­graças, estão também condenados ao medo.
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Várias espadas lhes pendem sobre a cabeça: a sempre iminente expulsão do país a que vieram parar, fugindo da vida dura, e a sempre possível explosão do racismo, as suas advertências sangrentas, os seus castigos: turcos queimados, árabes esfaqueados, negros balea­dos, mexicanos espancados. Os imigrantes pobres executam as tarefas mais pesadas e mais mal pagas, nos campos e nas ruas. Depois das horas de serviço, vêm as horas de perigo. Nenhu­ma tinta mágica os cobre para os tornar invisíveis.
Paradoxalmente, muitos trabalhadores do Sul do Mundo emigram para Norte, ou tentam contra ventos e marés essa aventura proibida, enquanto muitas fábricas do Norte emigram para o Sul. O dinheiro e as pessoas cruzam-se no caminho. O dinheiro dos países ricos viaja para os países pobres, atraí­do pelas jornadas de trabalho a um dólar e as jornadas sem horários, e os trabalhadores pobres viajam, ou quereriam via­jar, para os países ricos, atraídos pelas imagens de felicidade que a publicidade oferece ou a esperança inventa. O dinheiro viaja sem alfândegas e sem problemas; é recebido com beijos e flores e toques de trombetas. Os trabalhadores que emigram, pelo contrário, empreendem uma odisseia que, por vezes, ter­mina nas profundezas do Mediterrâneo ou do mar das Caraí­bas, ou nos rochedos do rio Bravo.
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Noutras épocas, enquanto Roma se apoderava de todo o Mediterrâneo e muito mais, os exércitos regressavam arrastan­do caravanas de prisioneiros de guerra. Esses prisioneiros trans­formavam-se em escravos e as caçadas de escravos empobreciam os trabalhadores livres. Quanto mais escravos havia em Roma, mais caíam os salários e mais difícil se tornava arranjar traba­lho. Dois mil anos mais tarde, o empresário argentino Enri­que Pescarmona fez um revelador louvor à globalização:
- Os asiáticos trabalham vinte horas por dia - declarou - por oitenta dólares por mês. Se quiser competir, tenho que recor­rer a eles. É o mundo globalizado. As raparigas filipinas, nos nos­sos escritórios de Hong Kong, estão sempre disponíveis. Não há sábados nem domingos. Se tiverem que fazer directas de vários dias sem dormir, fazem-no, e nunca cobram horas extraordinárias nem pedem nada.
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Meses antes desta elegia, tinha-se incendiado uma fábri­ca de bonecas em Banguecoque. As operárias, que ganhavam menos de um dólar por dia e que comiam e dormiam na fá­brica, morreram queimadas vivas. A fábrica estava fechada por fora, como os barracões no tempo da escravatura.
São numerosas as indústrias que emigram para os países pobres, à procura de braços, que os há baratíssimos e em abun­dância. Os governos desses países pobres dão as boas-vindas aos novos postos de trabalho, trazidos pelos messias do pro­gresso em bandeja de prata. Mas, em muitos desses países po­bres, o novo proletariado fabril labora em condições que evocam o nome que o trabalho tinha na época do Renas­cimento: tripalium, que era também o nome de um instrumento de tortura.0 preço de uma t-shirt com a imagem da princesa Pocahontas, vendida pela casa Disney, equivale ao salário de toda uma semana dos operários que coseu essa t-shirt no Haiti, a um ritmo de 375 t-shirts por hora.
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O Haiti foi o primeiro país do mundo a abolir a escravatura; e dois séculos depois desse feito, que muitos mortos custou, o país padece de escra­vatura assalariada. A cadeia McDonald's oferece brinquedos aos seus clientes infantis. Esses brinquedos são fabricados no Vietname, onde as operárias trabalham dez horas seguidas, com alpendres fechados a sete chaves, a troco de oitenta cêntimos. O Vietname tinha derrotado a invasão militar dos Estados Uni­dos; e um quarto de século depois daquele feito, que muitos mortos custou, o país padece de humilhação globalizada.
Por cada milhão de violações da lei que os inspectores cons­tatam em França, apenas treze são alvo de condenação no fi­nal dos processos. E, em quase todos os casos, a condenação consiste no pagamento de uma multa ridícula.
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A caçada aos braços já não carece de exércitos, como acon­tecia nos tempos coloniais. Disso se encarrega, sozinha, a mi­séria de que padece a maior parte do planeta. E a morte da Geografia: os capitais atravessam fronteiras à velocidade da luz, por obra e graça das novas tecnologias da comunicação e dos transportes, que eliminaram o tempo e as distâncias. E quan­do uma economia arrefece nalgum lugar do planeta," outras 77, economias espirram do outro lado do inundo.Em finais de 97 a desvalorização da moeda na Malásia implicou o sacrifício de milhares de postos de trabalho na indústria do calçado do sul do Brasil.
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Os países pobres estão metidos, de alma e coração, no con­curso universal do bom comportamento, para ver quem ofe­rece salários mais raquíticos e maior liberdade para envenenar o meio ambiente. Os países competem entre eles, mano a mano, para seduzir as grandes empresas multinacionais. As melhores condições para as empresas são as piores condições para o nível dos salários, da segurança no trabalho e da saúde da Terra e das pessoas. Ao longo e ao largo do mundo, os di­reitos dos trabalhadores estão a ser nivelados para baixo, en­quanto a mão-de-obra disponível se multiplica como nunca antes, nem nas piores épocas, tinha acontecido.
«A globalização tem ganhadores e perdedores», adverte um relatório das Nações Unidas. «Supõe-se que uma maré de ri­queza em ascensão levantará todos os barcos. Mas alguns po­dem navegar melhor que outros. Os iates e os transoceânicos estão de facto a levantar-se, em resposta às novas oportuni­dades, mas as balsas e os barcos a remos estão a meter água e alguns estão a afundar-se rapidamente». Os países tremem perante a possibilidade de que o dinheiro não venha, ou de que o dinheiro fuja. O naufrágio é uma realidade ou uma amea­ça que se traduz em pânico generalizado. Se não se portarem bem, dizem as empresas, vamos para as Filipinas, ou para a Tailândia, ou para a Indonésia, ou para a China, ou para Marte. Portar-se mal significa: defender a Natureza ou o que resta dela, reconhecer o direito à constituição de sindicatos, exigir o res­peito das normas internacionais e das leis locais, aumentar o salário mínimo.
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Em 1995, a cadeia de lojas GAP vendia, nos Estados Uni­dos, camisas made in El Salvador. Por cada camisola vendida a vinte dólares, os operários salvadorenhos recebiam 18 cênti­mos. Os operários, ou, melhor dizendo, as operárias, porque eram maioritariamente mulheres e crianças, que se matavam a trabalhar mais de catorze horas por dia no inferno das ofici­nas, organizaram um sindicato. A empresa contratista despe­diu trezentas e cinquenta. Veio a greve. Houve espancamentos da polícia, raptos, prisões. Em finais de 95, as lojas GAP anun­ciaram que se iam embora para a Ásia.
Na América Latina, a nova realidade do mundo traduz­-se num crescimento vertical do chamado sector informal da economia. O sector informal que, traduzido, significa trabalho à margem da lei, oferece 85 em cada novos cem postos de trabalho. Os trabalhadores fora da lei trabalham mais, ganham menos, não têm benefícios sociais e não se encontram prote­gidos pelas garantias laborais conquistadas em longos anos, duros anos, de luta sindical. E também não é muito melhor a situação dos trabalhadores legais: desregulamentação e flexibili­zação são os eufemismos que definem unia situação na qual cada um tem que se desenrascar como puder. Esta situação foi definida de forma certeira por uma velha operária paraguaia, que me comentou, a propósito da sua reforma de miséria:
- Se este é o prémio, como será o castigo!
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Jorge Bermúdez tem três filhos e três empregos. Ao rom­per da manhã, sai para percorrer as ruas da cidade de Quito num velho Chevrolet que faz de táxi. Desde as primeiras ho­ras da tarde, dá aulas de inglês. Há dezasseis anos que é pro­fessor numa escola pública, onde ganha cento e cinquenta dólares por mês. Quando acaba a jornada na escola pública, começa numa escola privada, até à meia-noite. Jorge Bermúdez não tem nenhum dia livre. Desde há tempos que sofre de ardores no estômago e anda mal-humorado e com pouca pa­ciência. Um psicólogo explicou-lhe que essas maleitas eram psicossomáticas e perturbações de comportamento derivadas do excesso de trabalho e recomendou-lhe que abandonasse dois dos seus três empregos para restabelecer a sanidade físi­ca e mental. O psicólogo não lhe explicou o que fazer para chegar ao fim do mês.
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No mundo às avessas, a educação não compensa. O ensi­no público latino-americano é um dos sectores mais castiga­dos pela nova situação laboral. Os professores recebem elogios, a retórica bacoca dos discursos que exaltam o labor abnegado dos apóstolos da docência que, amorosamente, moldam com as mãos o barro das novas gerações; e, além disso, ganham salários que só se vêem à lupa. 0 Banco Mundial chama à educação «um investimento em capital humano», o que cons­titui, do seu ponto de vista, uma homenagem; mas, num re­latório recente, propõe, como possibilidade, reduzir os salários da classe docente nos países onde «a oferta de professores» permita manter o nível docente.
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Reduzir os salários? Que salários? ,Pobres, mas docentes,,, diz-se no Uruguai, e também: «Tenho mais fome do que um mestre-escola.» Os professores universitários estão na mesma. Em meados de 95, li na imprensa um anúncio de um concur­so da Faculdade de Psicologia de Montevideu. Era preciso um professor de Ética, ofereciam-se cem dólares por mês. Pensei que tinha que se ser um mágico da ética para não se corrom­per com semelhante fortuna.

sábado, 30 de dezembro de 2006

Os Alunos

Dia após dia, nega-se às crianças o direito a serem crianças. Os factos, que troçam deste direito, ministram os seus ensinamentos na vida quotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se habituem a agir como age o dinheiro. O Mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E aos do meio, aos meninos que não são ricos nem pobres, tem-nos atados aos pés do televisor, para que desde muito cedo aceitem, como destino, a vida prisioneira; Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguirem ser crianças.
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Os de cima, os de baixo e os do meio
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No oceano do desamparo, erguem-se ilhas de privilégio. São luxuosos campos de concentração, onde os poderosos se encontram com os poderosos e nunca podem esquecer, nem por um momento, que são poderosos. Em algumas das gran­des cidades latino-americanas, os raptos tornaram-se hábito e as crianças ricas crescem encerradas dentro da bolha do medo. Habitam mansões amuralhadas, grandes casas ou gru­pos de casas rodeadas de cercas electrificadas e de guardas ar­mados, e são vigiadas dia e noite pelos guarda-costas e pelas câmaras de circuitos fechados de segurança. As crianças ricas viajam, tal como o dinheiro, em veículos blindados. Descobrem o metropolitano em Paris ou em Nova Iorque, mas nunca o usam em São Paulo ou na capital do México.
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Elas não vivem nas cidades onde vivem. Está-lhes vedado esse vasto inferno que ameaça o seu minúsculo céu privado. Para além das fronteiras, estende-se uma região de terror onde as pessoas são muitas, feias, sujas e invejosas. Em plena era da globalização, as crianças já não pertencem a lugar algum, mas as que menos lugar têm são as que mais coisas têm: crescem sem raízes, despojadas de identidade cultural e sem mais sen­tido social do que a certeza de que a realidade é um perigo. A sua pátria está nas marcas de prestígio universal que dis­tinguem as suas roupas e tudo aquilo que usam, e a sua lin­guauem é a linguagem dos códigos electrónicos internacionais. Nas mais diversas cidades e nos mais distantes lugares do mundo, os filhos dos privilegiados parecem-se entre si, em costumes e tendências, como se parecem entre si os shopping centers e os aeroportos, que se encontram fora do tempo e do espaço. Educados na realidade virtual, são deseducados na ignorãn­cia da realidade real, que apenas existe para ser temida ou comprada.
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Fast food, fast cars, fast life: desde que nascem, as crianças ricas são treinadas para o consumo e para a fugacidade e pas­sam a infância a provar que as máquinas são mais dignas de confiança do que as pessoas. Quando chegar o momento do ritual de iniciação, ser-lhes-á oferecida a primeira armadura todo-o-terreno, com tracção às quatro rodas. Durante os anos de espera, lançam-se a toda a velocidade nas auto-estradas ci­bernéticas e confirmam a sua identidade devorando imagens e mercadorias, fazendo zaapping e fazendo shopping. As ciber­crianças navegam pelo ciberespaço com o mesmo à-vontade com que as crianças abandonadas deambulam pelas ruas das cidades.
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Muito antes de as crianças ricas deixarem de ser crianças e descobrirem as drogas que atordoam a solidão e mascaram o medo, já as crianças pobres inalam gasolina ou cola. Enquan­to as crianças ricas brincam às guerras com balas de raios laser, já as balas de chumbo ameaçam os meninos de rua.Na América Latina, as crianças e os adolescentes consti­tuem quase metade da população total. Metade dessa metade vive na miséria.
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Sobreviventes: na América Latina morrem, por hora, cem crianças de fome ou de doença curável, mas há cada vez mais crianças pobres nas ruas e nos campos desta região que fabrica pobres e proíbe a pobreza. São crianças a maio­ria de todos os pobres; e são pobres, maioritariamente, as crianças. E, de todos os reféns do sistema, são as crianças as que vivem pior. A sociedade espreme-as, vigia-as, castiga-as e às vezes mata-as: quase nunca as ouve, nunca as compreende.
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Estas crianças, filhas de pessoas que trabalham tempora­riamente e que não têm nem trabalho nem lugar no mundo, são obrigadas, desde muito cedo, a viver ao serviço de qual­quer actividade de ganha-pão, esmifrando-se em troca de comida ou de pouco mais, a todo o comprimento e a toda a largura do mapa do mundo. Depois de aprender a caminhar, aprendem quais as recompensas que se dão aos pobres que se portam bem: eles, e elas, são a mão-de-obra gratuita das ofi­cinas, das lojas e das cantinas caseiras, ou são a mão-de-obra ao preço da chuva das indústrias de exportação que fabricam roupa desportiva para as grandes empresas multinacionais.
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Tra­balham nas fainas agrícolas ou nas distribuições urbanas, ou trabalham em casa ao serviço de quem aí mandar. São peque­nos escravos ou escravas da economia familiar ou do sector in­formal da economia globalizada, onde ocupam o mais baixo escalão da população activa ao serviço do mercado mundial:
nas lixeiras da Cidade do México, Manila ou Lagos, jun­tam vidros, latas e papéis, e disputam os restos de comida com os abutres; mergulham no mar de Java à procura de pérolas; procuram diamantes nas minas do Congo; são toupeiras nas galerias das minas do Peru, imprescindí­veis pela sua pequena estatura, e, quando os seus pulmões não dão mais, vão parar aos cemitérios clandestinos; cultivam café na Colômbia e na Tanzânia e são envene­nadas com pesticidas; são envenenadas com os pesticidas das plantações de al­godão da Guatemala e nos bananais das Honduras; na Malásia recolhem o látex das árvores da borracha, em jornadas de trabalho que vão de sol a sol; constroem vias ferroviárias na Birmânia; no Norte da índia, derretem nos fornos de vidro, e no Sul nos fornos de tijolo;no Bangladesh, desempenham mais de trezentas ocupações diferentes, com salários que oscilam entre o nada e o quase nada por dia sem fim; participam em corridas de camelos para os emires árabes e são ginetes pastores nas quintas de Río de la Plata; em Port-au-Prince, Colombo, Jacarta ou Recife, servem à mesa do patrão, em troca do direito a comer aquilo que cai da mesa; vendem fruta nos mercados de Bogotá e vendem pastilhas elásticas nos autocarros de São Paulo; limpam pára-brisas nas esquinas de Lima, Quito ou San Salvador; engraxam sapatos nas ruas de Caracas ou Guanajuato; cosem roupa na Tailândia e chuteiras no Vietname; cosem bolas de futebol no Paquistão e bolas de basebol nas Honduras ou no Haiti; para pagar as dívidas dos pais, colhem chá ou tabaco nas plantações do Sri Lanka e cultivam jasmins, no Egipto, com destino à perfumaria francesa; alugadas pelos pais, tecem carpetes no Irão, Nepal e índia, desde antes do amanhecer até depois da meia-noite, e quando chega alguém para as resgatar, perguntam: «O se­nhor é o meu novo amo ? Vendidas a cem dólares pelos pais, oferecem-se no Sudão para todo o tipo de tarefas sexuais ou para todo o serviço.
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Os exércitos recrutam a força crianças, em alguns pontos da África, do Médio Oriente e da América Latina. Nas guer­ras, os soldadinhos trabalham a matar e, sobretudo, trabalham a morrer: constituem metade das vítimas nas guerras africa­nas recentes. Com excepção da guerra, que, conforme conta a tradição e ensina a realidade, é coisa de machos, em quase todas as restantes tarefas os braços das meninas revelam-se tão úteis quanto os braços dos meninos. Mas o mercado laboral reproduz nas meninas a discriminação que normalmente pra­tica contra as mulheres; elas, as meninas, ganham sempre menos do que o pouquíssimo que eles, os meninos, ganham, quando ganham alguma coisa.
A prostituição é desde cedo o destino de muitas meninas e, em menor escala, também de uns quantos meninos, em todo o mundo. Por assombroso que pareça, calcula-se que existem pelo menos cem mil prostitutas infantis nos Estados Unidos, segundo o relatorio da UNICEF de 1997.
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Mas é nos bordéis rentáveis e nunca o serão. Do ponto de vista da ordem esta­belecida, começam a roubar o ar que respiram e depois rou­bam tudo o que lhes aparece à frente. Entre o berço e a sepultura, a fome ou as balas costumam interromper-lhes a viagem. O mesmo sistema produtivo que despreza os velhos teme as crianças. A velhice é um fracasso, a infância é um perigo. Cada vez há mais crianças marginais que nascem com tendência para o crirne, no dizer de alguns especialistas. Elas integram o sector mais ameaçador dos excedentes de população. A criança como perigo público, a conduta anti-social do menor na América, é o tema recorrente dos Congressos Pan-Ameri­canos da Criança, desde há uns tantos anos a esta parte.
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As crianças que vêm do campo para a cidade, e as crianças po­bres em geral, têm um comportamento potencialmente anti-social, de acordo com as advertências dos Congressos desde 1963. Os governos e alguns peritos no assunto partilham a obsessão pelas crianças doentes de violência, orientadas para o vício e para a perdição. Cada criança contém uma possível corrente do El Nino e é preciso prevenir a devastação que pode provocar. No primeiro Congresso Policial Sul-Americano, celebrado em Montevideu em 1979, a polícia colombiana explicou que «o aumento cada vez maior da população de menos de dezoito anos induz à estimativa de uma maior população POTENCIAL MENTE DELINQUENTE- (maiúsculas do documento original).
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Nos países latino-americanos, a hegemonia do mercado está a destruir os laços de solidariedade e a destroçar o tecido social coniunitária Que destino têm os ninguéns, os donos de nada, em países onde o direito de propriedade está a trans­formar-se no único direito? E os filhos dos ninguéns ? A mui­tos, que são cada vez mais, a fome empurra-os para o roubo, a mendicidade e a prostituição; e a sociedade de consumo insulta-os oferecendo aquilo que lhes nega. E eles vingam-se, lançando-se ao assalto, bando de desesperados unidos pela certeza da morte que os espera: segundo a UNICEF, em 1995 havia oito milhões de crianças abandonadas, meninos de rua, nas grandes cidades latino-americanas; segundo a organização Human Rights Watch, em 1993 os esquadrões parapoliciais assassinaram seis crianças por dia na Colômbia e quatro no Brasil.
Entre um extremo e outro, o meio. Entre as crianças que vivem prisioneiras da opulência e as que vivem desamparadas, estão as crianças que têm bastante mais que nada, mas muito menos que tudo.E são cada vez menos livres as crianças da classe média. «Que te deixem ser ou que não te deixem ser, eis a questão», soube dizer Chunny Chíunez, humorista espa­nhol. A estas crianças a liberdade é confiscada, dia após dia, pela sociedade que sacraliza a ordem enquanto gera a desor­dem. O medo do medo: o chão range debaixo dos pés, já não há garantias, a estabilidade é instável, evaporam-se os empre­gos, desvanece-se o dinheiro, chegar ao fim do mês é uma façanha. Bem-vinda, classe média, saúda um carta- à entrada de um dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires.
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A classe média continua a viver em estado de logro, fingindo que cum­pre as leis e que acredita nelas e simulando ter mais do que aquilo que tem; mas nunca lhe foi tão difícil cumprir esta abnegada tradição. A classe média encontra-se asfixiada pe­las dívidas e paralisada pelo pânico, e no pânico cria os seus filhos. Pânico de viver, pânico de cair; pânico de perder o tra­balho, o carro, a casa, as coisas, pânico de não chegar a ter o que se deve ter para se chegar a ser. No clamor colectivo pela segurança pública, ameaçada pelos monstros do crime que espreita, a classe média é aquela que grita mais alto. Defende a ordem como se fosse a sua proprietária, embora não seja mais do que uma inquilina esmagada pelo preço do aluguer e pela ameaça de despejo.
Apanhadas nas armadilhas do pânico, as crianças da clas­se média estão cada vez mais condenadas à humilhação da prisão perpétua.', Na cidade do futuro, que é já a cidade do presente, as telecrianças, vigiadas por amas electrónicas, con­templarão a rua a partir de alguma janela das suas telecasas: a rua interdita pela violência ou pelo pavor à violência, a rua onde acontece o sempre perigoso e, por vezes prodigioso, es­pectáculo da vida­.

Educando pelo Medo

A escola do mundo às avessas é a mais demo¬crática das instituições educativas. Não exige exame de admissão, não cobre matrícula e ministra os seus cursos gratuitamente, a todos e em qualquer lugar, assim na terra como no céu: por alguma razão é filha do sistema que conquistou, pela primeira vez em toda a história da Humanidade, o poder universal. Na escola do mundo às avessas, o chumbo aprende de a flutuar e a cortiça a afundar-se. As víboras aprendem a voar e as nuvens aprendem a rastejar pelos caminhos.
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Os modelos do êxito
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O mundo às avessas premeia às avessas: despreza a hones­tidade, pune o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Os seus mestres caluniam a nature­za: a injustiça, dizem, é a lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais prestigiados do corpo docente, fala da «taxa natural de desemprego». Por lei natural, provam Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros encontram-se nos de­graus mais baixos da escala social. Para explicar o êxito dos seus negócios, John D. Rockfeller costumava dizer que a na­tureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis; e mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam a acreditar que Charles Darwin escreveu os seus livros para anunciar a glória deles.
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Sobrevivência dos mais aptos' A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassi­no, é virtude humana quando serve para que as grandes empresas digiram as pequenas e para que os países fortes devo­rem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando qual­quer pobre tipo sem trabalho sai à procura de comida com uma faca na mão. Os doentes da patologia anti-social, loucura e perigo que cada pobre contém, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. Os delinquentes da treta aprendem o que sabem levantando o olhar, a partir de baixo em direcção aos cumes; estudam o exemplo dos triunfadores e, na medida do possível, fazem o que podem para lhes imitarem os méritos. Mas «os lixados estarão sempre lixados», como dizia Emilio Azcárraga, que foi ame) e senhor da televisão mexicana. As pos­sibilidades de um banqueiro que esvazia um banco possa des­frutar, em paz, dos frutos do seu trabalho são directamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão rouba um banco vá parar à prisão ou ao cemitério.
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Quando um delinquente mata por alguma dívida por pa­gar, a execução chama-se ajuste de contas; chama-se plano de ajustamento a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional decide liquidá-lo. A malfeitoria fi­nanceira sequestra os países e limpa-os se não pagarem o res­gate; quando comparados, qualquer bandido se revela mais inofensivo do que Drácula debaixo do sol. A economia mun­dial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os or­ganismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres, e contra todos os pobres de todos os países, com uma frieza pro­fissional e uma impunidade que humilham o melhor dos bom­bistas.
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A arte de enganar o próximo, que os vigaristas praticam caçando desprevenidos pelas ruas, chega ao sublime quando alguns políticos de êxito exercitam o seu talento. Nos subúr­bios do mundo, os chefes de Estado vendem os restos de colec­ção e os retalhos dos seus países a preço de liquidação de final de temporada, tal como nos subúrbios das cidades os de­linquentes vendem, a preço vil, o produto dos seus assaltos.
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Os pistoleiros que são contratados para matar realizam, em pequena escala, o mesmo serviço que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes que são elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes, à coca nas es­quinas, desferem golpes que são a versão artesanal dos golpes de sorte assestados pelos grandes especuladores que espoliam multidões a golpes de computador. Os violadores que mais ferozmente violam a Natureza e os direitos humanos nunca são presos. Têm as chaves das cadeias.
No mundo tal como está, o mundo às avessas, os países que custeiam a paz universal são aqueles que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos restantes países; os bancos mais prestigiados são os que mais narcodólares lavam e os que mais dinheiro roubado guardam; as indústrias mais florescentes são as que mais envenenam o planeta; e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impu­nidade e felicitações os que matam mais gente em menos tem­po, os que ganham mais dinheiro com menos trabalho e os que destroem a maior quantidade de Natureza com menos custos.
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Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas gran­des cidades do mundo às avessas. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem pela an­siedade de ter as coisas que não têm e outros não dormem pelo pânico de perderem as coisas que têm. O mundo às avessas treina-nos para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, reduz-nos à solidão e consola-nos com drogas químicas e com amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de tédio, se uma bala perdida não nos abreviar a exis­tência.
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Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre estas ameaças de desgraça, a nossa única liberdade possível ? O mun­do às avessas ensina-nos a padecer a realidade em vez de a mudar, a esquecer o passado em vez de o ouvir e a aceitar o futuro em vez de o imaginar: assim age o crime e assim o re­comenda. Na sua escola, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem medalha que não tenha reverso, nem tempestade que não traga bonança, nem desâ­nimo que não procure ânimo. Também não há escola que não encontre a sua contra-escola.