O suplício de Tântalo atormenta os pobres. Condenados a sede e à fome, estão também condenados a contemplar os manjares que a publicidade oferece. Quando aproximam a boca ou esticam a mão, essas maravilhas afastam-se. E se apanham alguma, lançando-se ao assalto, vão parar à cadeia ou ao cemitério.Manjares de plástico, sonhos de plástico. E de plástico o paraíso que a televisão promete a todos e a poucos concede. Ao seu serviço estamos. Nesta civilização, onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram sequestrados pelos meios: as coisas compram-te, o automóvel conduz-te, o computador programa-te e a televisão vê-te.
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Globalização, bobalização
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Até há alguns anos, o homem que não devia nada a ninguém era virtuoso exemplo de honestidade e vida laboriosa. Hoje, é um extraterrestre. Quem não deve não é. Devo, logo existo. Quem não é digno de crédito não merece nome nem rosto: o cartão de crédito prova o direito à existência. Dívidas: isso tem quem nada tem; uma pata metida nessa ratoeira há-de ter qualquer pessoa ou país que pertença a este mundo.
O sistema, transformado em sistema financeiro, multiplica os devedores para multiplicar os consumidores. Dom Karl Marx, que há mais de um século as viu aproximar-se, advertiu para o facto de a tendência para a queda das margens de lucro e a tendência para a superprodução obrigarem o sistema a crescer sem limites e a estender até à loucura o poder dos parasitas da «moderna bancocracia», que definiu como «um bando que não sabe nada de produção nem tem nada a ver com ela».
O sistema, transformado em sistema financeiro, multiplica os devedores para multiplicar os consumidores. Dom Karl Marx, que há mais de um século as viu aproximar-se, advertiu para o facto de a tendência para a queda das margens de lucro e a tendência para a superprodução obrigarem o sistema a crescer sem limites e a estender até à loucura o poder dos parasitas da «moderna bancocracia», que definiu como «um bando que não sabe nada de produção nem tem nada a ver com ela».
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A explosão do consumo no mundo actual faz mais barulho que todas as guerras e arma mais confusão que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: “quem bebe à conta embebeda-se a dobrar”. A farra aturde e turva a visão; esta tão grande bebedeira universal parece não ter limites nem no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo faz muito barulho, como o tambor, porque é vazia; e na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o bêbedo acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que tem que pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe são impostas pelo sistema que as gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões precisam de ar, e, por seu turno, precisam que andem de rastos, como andam, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
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O sistema fala em nome de todos, a todos dirige as suas imperiosas ordens de consumo, entre todos difunde a febre compradora; mas nem pensar: para quase todos, esta aventura começa e acaba no ecrã do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, acaba por ter muito mais que dívidas para pagar, dívidas que geram novas dívidas, e acaba por consumir fantasias que por vezes se materializam a delinquir.
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A difusão em massa do crédito, avisa o sociólogo Tomás Moulian, tornou possível que a cultura quotidiana do Chile gire à volta dos símbolos do consumo: a aparência como núcleo da personalidade, o artifício como modo de vida, «a utopia a prazo de quarenta e oito meses». O modelo consumista foi-se impondo, ao longo dos anos, desde que em 1973 os jets Hawker Hunter bombardearam o palácio presidencial de Salvador Allende e o general Augusto Pinochet inaugurou a era do milagre. Um quarto de século depois, no início de 98, The New York Times explicou que esse golpe de Estado tinha dado início à «transformação do Chile, que era uma república das bananas estancada e se transformou na estrela económica da América Latina».
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Quantos chilenos são iluminados por esta estrela ? Um quarto da população sobrevive em estado de pobreza absoluta e o senador democrata-cristão Jorge Lavandero demonstrou que os cem chilenos mais ricos do mundo ganham mais do que tudo o que o Estado gasta anualmente em serviços sociais. O jornalista norte-americano Marc Cooper encontrou muitos impostores no paraíso do consumo: chilenos que se deixam assar com as janelas fechadas para fingir que têm ar condicionado no automóvel, ou que falam por telemóveis de brinquedo, ou que usam o cartão de crédito para comprar batatas ou umas calças em doze prestações. O jornalista também descobriu alguns trabalhadores zangados nos supermercados Jumbo: aos sábados de manhã, há pessoas que enchem o carrinho até ao cimo com os artigos mais caros, se passeiam nos corredores a exibir-se por algum tempo e depois abandonam o carrinho repleto e saem pela saída lateral sem comprar nem uma pastilha elástica.
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O direito ao esbanjamento, privilégio de poucos, diz ser liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e dir-te-ei quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para crescerem mais depressa. Nas fábricas de ovos, às galinhas também está interdita a noite. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e a angústia de pagar.Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, ma: é muito bom para a indústria farmacêutica. Os Estados Unidos consomem metade dos sedativos, ansiolíticos e restantes drogas químicas vendidas legalmente no mundo, e mais de metade das drogas proibidas vendidas ilegalmente, o que não é pouco se se tiver em conta que os Estados Unidos sornam apenas cinco por cento da população mundial.
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«Gente infeliz a que vive a comparar-se,,, lamenta uma mulher no bairro de El Buceo, em Montevideu. A dor de já não ser, outrora cantada pelo tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um homem pobre. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: «Os meus irmãos trabalham para as marcas. Passam a vida a comprar etiquetas e a suar em bica para pagar as prestações.,,
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, a escala gigantesca, impõe em todo o lado as suas pautas de consunlo obrigatórias. Esta ditadura da uniformização obrigatória' é mais devastadora que qualquer ditadura de partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz- os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, a escala gigantesca, impõe em todo o lado as suas pautas de consunlo obrigatórias. Esta ditadura da uniformização obrigatória' é mais devastadora que qualquer ditadura de partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz- os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
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O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica, The Lancet, na última década a« obesidade severa» cresceu quase trinta por cento entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou em quarenta por cento nos últimos dezasseis anos; de acordo com investigação recente do entro de Ciências da Saúde da Universidade de Colorado. O país que inventou as comidas e as bebidas light, a diet food e os alimentos fat free possui a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só desce do automóvel para trabalhar e para ver televisão. Sentado diante do pequeno ecrã, passa quatro horas por dia a devorar comida de plástico.
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Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a colonizar os paladares do mundo e a reduzir a cinzas as tradições da cozinha local. Os hábitos da boa comida, que vêm de longe, têm, nalguns países, milhares de anos de refinamento e de diversidade e constituem um património colectivo que, de algum modo, se encontra nos fogões de todos e não apenas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses traços de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser esmagados, de modo fulminante, pela imposição do sabor químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast fond. A plastificação da comida à escala mundial, obra da MacDonald's, da Burger King e doutras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: sagrado direito, porque a boca é uma das portas da alma.
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O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola oferece eterna juventude e que o menu da MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército da MacDonald's dispara hambúrgueres para as bocas das crianças e dos adultos em todo o planeta. O duplo arco desse M serviu de estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante da McDonald's de Moscovo, inaugurada em 1990 com bombos e pratos, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloquência como o desmoronamento do Muro de Berlim.
Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos empregados a liberdade de se filiarem em qualquer sindicato. A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera.
Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos empregados a liberdade de se filiarem em qualquer sindicato. A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera.
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Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas em 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cidade próxima de Vancôver, conseguiram essa conquista, digna do Guiness.Em 1996, os militantes ecologistas britânicos, Helen Steel e David Morris, encetaram um processo judicial contra a McDonald's. Acusaram a empresa por maus tratos aos trabalhadores, violação da Natureza e manipulação comercial das emoções infantis: os empregados são mal pagos, trabalham em más condições e não podem associar-se; a produção de carne para os hambúrgueres arrasa as florestas tropicais e despoja os indígenas; e a publicidade multimilionária atenta contra a saúde pública, induzindo as crianças a preferir alimentos de muito duvidoso valor nutritivo. A disputa, que a princípio parecia a picada de um mosquito no lombo de um elefante, teve bastante repercussão, ajudou a difundir toda esta informação que a opinião pública ignora e está a tornar-se uma cara e longa dor de cabeça para uma empresa habituada à impunidade do poder. Ao fim e ao cabo, é do poder que se trata: a McDonald's emprega, nos Estados Unidos, mais gente que toda a indústria metalomecânica e, em 1997, as suas vendas superaram a soma das exportações totais da Argentina e da Hungria. O Big Mac é tão mas tão importante que o seu preço é usado em vários países como unidade de valor para as transacçbes financeiras internacionais: a comida virtual orienta a economia virtual. Segundo a publicidade da McDonald's no Brasil, o Big Mac, produto de topo da casa, é como o amor: dois corpos que se abraçam e se beijam a escorrer molho tártaro, excitados pelo queijo e o pepino, enquanto os seus corações de cebola ardem, estimulados pela verde esperança da alface.
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Preços baixos, tempo breve: as máquinas humanas recebem o seu combustível e imediatamente retornam ao sistema produtivo. Numa destas gasolineiras trabalhou, em 1983, o escritor alemão Günther Wallraf£ Era um dos McDonald's da cidade de Hamburgo, que é inocente das coisas que se fazem em seu nome. Wallraff trabalhou a correr sem parar, salpicado pelas gotas de óleo a ferver: uma vez descongelados, os hambúrgueres têm dez minutos de vida. Depois, empestam. Têm que ser atirados para a chapa sem perda de tempo. Tudo tem o mesmo sabor: as batatas fritas, as verduras, a carne, o peixe, o frango. E um sabor artificial, ditado pela indústria química, que também se ocupa a esconder, com corantes, os vinte e cinco por cento de gordura que a carne contém. Esta porcaria é a comida de maior êxito do nosso século. Os seus mestres de cozinha formam-se na Hamburguer University, em Elk Grove, Ilinbis. Mas os donos do negócio, segundo fontes bem informadas, preferem os caríssimos restaurantes que oferecem os mais sofisticados pratos disso a que se há-de chamar comida étnica: sushi, thai, persa, javanesa, hindu, mexicana... Democracia não é desleixo.
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As massas consumidoras recebem ordens numa língua universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não conseguiu. Qualquer um percebe, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quartel do século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a eles, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de ócio vai-se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprado a prestações, este animalzinho prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis de último modelo, e pobres e ricos ficam a saber das vantajosas taxas de juro que tal ou tal banco oferece.
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Pobre é o que não tem ninguém, diz e repete uma velha que fala sozinha nas ruas de São Paulo. A gente é cada vez mais muita e cada vez está mais só. Os solitários tornados muitos constituem multidões que se apertam nas cidades:
- Poderia, por favor, tirar o cotovelo do meu olho?
Os peritos sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuros contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume beija-te, o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. Os buracos no peito fecham-se atafulhando-os de coisas, ou sonhando com fazê-lo. E as coisas não podem só abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem-te e salvam-te do anonimato multitudinário. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou raramente o faz. Isso é o de menos. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem quer transformar-se comprando esta loção para depois da barba?
- Poderia, por favor, tirar o cotovelo do meu olho?
Os peritos sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuros contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume beija-te, o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. Os buracos no peito fecham-se atafulhando-os de coisas, ou sonhando com fazê-lo. E as coisas não podem só abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem-te e salvam-te do anonimato multitudinário. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou raramente o faz. Isso é o de menos. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem quer transformar-se comprando esta loção para depois da barba?
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O criminologista Anthony Platt observou que os delitos de rua não são apenas fruto da pobreza extrema. São também fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade; mas qualquer telespectador pobre tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão semelhante a ela que a diferença é mera questão de especialistas. Segundo o historiador Eric Hobsbawn, o século xx pós fim a sete mil anos de vida humana, centrada na agricultura desde que apareceram os primeiros cultivos no final do Paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses tornam-se citadinos, Na América Latina, temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela erosão das suas terrinhas, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todo o lado, mas sabem por experiência que atende nas grandes urbes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um porvir para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém-chegados é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é gratuito e que os mais caros artigos de luxo são o ar e o silêncio.
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Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano de Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas gostam de juntar-se». Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem ?. Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo ? E as pessoas, encontram-se com pessoas ? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quantas pessoas se encontram com as coisas?
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O mundo inteiro tende a transformar-se num ecrã de televisão, onde se vêem as coisas, mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As paragens de autocarro e as estações de comboio, que até há pouco eram pontos de encontro entre pessoas, estão agora a transformar-se em espaços de exibição comercial.O shopping center, o shopping mall, montra de todas as montras, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acodem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora se submete ao bombardeamento da oferta incessante e extenuante. A gentalha, que sobe e desce pelas escadas rolantes, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a fotografia, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do prócere na praça. Beatriz Sano observou que os habitantes dos bairros suburbanos acodem ao center, ao shopping center, como antes acudiam ao centro.
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O tradicional passeio de fim-de-semana ao centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes oásis urbanos. Lavados, engomados e penteados, vestidos com roupa domingueira, os visitantes vêm a uma festa para a qual não são convidados, mas podem ser mirones. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma alucinante paisagem de modelos, marcas e etiquetas.
A cultura de consumo, cultura do efémero, condenação ao desuso imediato. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Neste final de século onde a única coisa permanente é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz, ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã sabe-se lá, e todo o trabalhador é um desempregado em potência. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos de fugacidade, oferecem a mais bem sucedida ilusão de segurança. Eles existem fora do tempo, sem idade e sem raízes, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
A cultura de consumo, cultura do efémero, condenação ao desuso imediato. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Neste final de século onde a única coisa permanente é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz, ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã sabe-se lá, e todo o trabalhador é um desempregado em potência. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos de fugacidade, oferecem a mais bem sucedida ilusão de segurança. Eles existem fora do tempo, sem idade e sem raízes, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
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Nestes santuários do bem-estar pode fazer-se tudo, sem necessidade de sair para a intempérie suja e ameaçadora, Até dormir se pode, segundo os últimos modelos de shoppings, que em Los Angeles e em Las Vegas incluem serviços de hotelaria e ginásios. Os shoppings, que não dão nem pelo frio nem pelo calor, estão a salvo da contaminação e da violência. Michael A. Petti publica os seus conselhos científicos na imprensa mundial, numa difundida série chamada Viva mais. Nas cidades com má qualidade do ar, o dr. Petti aconselha a quem quer viver mais: «Caminhe dentro de um centro centro comercial». O cogumelo atómico da contaminação pende sobre cidades como o México, São Paulo ou Santiago do Chile, e nas esquinas o crime ameaça; mas neste frígido mundo fora do inundo, ar asséptico, passeios vigiados, pode-se respirar e caminhar e comprar sem riscos.
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Os shoppings são todos mais ou menos iguais, em Los Angeles ou em Banguecoque, em Buenos Aires ou em Glasgow. Esta unanimidade não os impede de competir na invenção de novos ímanes para apanhar clientes. Por exemplo, à revista Veja exaltava assim, em finais de 91, uma das novidades do shopping Praia das Belas, em Porto Alegre: «Para o conforto dos bebes, oferecem-se-lhes carrinhos, facilitando assim o passeio destes pequenos consumidores». Mas a segurança é o artigo mais importante que todos os shopping centers oferecem. A segurança, mercadoria de luxo, está ao alcance de qualquer um que penetre nestes bunkers. Na sua infinita generosidade, a cultura de consumo oferece-nos o salvo-conduto que nos permite fugir do inferno das ruas. Rodeadas de imensas praias de estacionamento, onde os automóveis aguardam, estas ilhas oferecem espaços fechados e protegidos. Aí as pessoas cruzam-se com as pessoas, chamadas pelas vozes do consumo, como antes as pessoas se encontravam com outras pessoas chamadas pela vontade de se verem, nos cafés ou nos espaços abertos das praças, dos parques e dos velhos mercados: nos nossos dias, essas intempéries estão demasiado expostas aos riscos da violência urbana. Nos shoppings, não há perigo. A polícia pública e a polícia privada, a polícia visível e a polícia invisível, ocupam-se de pôr os suspeitos na rua ou na cadeia.
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Os pobres que não sabem disfarçar a sua perigosidade congénita e, sobretudo, os de pele escura, podem ser culpados até não se provar a sua inocência. E, se são crianças, pior. A perigosidade é inversamente proporcional à idade. Já em 1979, um relatório da polícia colombiana, apresentado ao congresso policial sul-americano, explicava que a polícia infantil não tinha tido outro remédio senão abandonar a sua obra social para «atalhar as maldades» dos menores perigosos e «evitar o estorvo que a sua presença causa nos centros comerciais».
Estes gigantescos supermercados, transformados em cidades em miniatura, são também vigiados pelos sistemas electrónicos de controlo, olhos que vêem sem serem vistos, câmaras ocultas que seguem os passos da multidão que deambula por entre as mercadorias; mas a electrónica não serve apenas para vigiar e punir os indesejáveis que podem sucumbir à tentação dos frutos proibidos. A tecnologia moderna também serve para que os consumidores consumam mais. Na era cibernética, quando o direito à cidadania se fundamenta no dever do consumo, as grandes empresas espiam os consumidores e bombardeiam-nos com a sua publicidade. Os computadores oferecem uma radiografia de cada cidadão. Pode-se saber quais são os seus hábitos e os seus gostos e gastos, através do uso que cada cidadão faz do cartão de crédito, das caixas automáticas e do correio electrónico.
Estes gigantescos supermercados, transformados em cidades em miniatura, são também vigiados pelos sistemas electrónicos de controlo, olhos que vêem sem serem vistos, câmaras ocultas que seguem os passos da multidão que deambula por entre as mercadorias; mas a electrónica não serve apenas para vigiar e punir os indesejáveis que podem sucumbir à tentação dos frutos proibidos. A tecnologia moderna também serve para que os consumidores consumam mais. Na era cibernética, quando o direito à cidadania se fundamenta no dever do consumo, as grandes empresas espiam os consumidores e bombardeiam-nos com a sua publicidade. Os computadores oferecem uma radiografia de cada cidadão. Pode-se saber quais são os seus hábitos e os seus gostos e gastos, através do uso que cada cidadão faz do cartão de crédito, das caixas automáticas e do correio electrónico.
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De facto, isto é o que acontece de cada vez que nos países de mais alto desenvolvimento, onde a manipulação comercial do universo on line está a violar impunemente a vida privada para a pôr ao serviço do mercado. Torna-se cada vez mais difícil, por exemplo, que um cidadão norte-americano possa manter em segredo as compras que faz, as doenças de que padece, o dinheiro que tem e o dinheiro que deve: a partir desses dados, não é assim tão difícil deduzir que novos serviços poderia contratar, em que novas dívidas poderia meter-se e quantas novas coisas poderia comprar.Por muito que cada cidadão compre, será sempre pouco em relação com o muito que é necessário vender. Nestes últimos anos, por exemplo, a indústria automóvel está a fabricar mais carros do que a procura absorve. As grandes cidades latino-americanas compram mais e mais. Até onde? Há um tecto que não podem ultrapassar, submetidas como estão à contradição entre as ordens que recebe o mercado interno e as ordens que transmite o mercado internacional: a contradição entre a obsessão de consumir, que requer salários cada vez mais elevados, e a obrigação de competir, que exige salários cada vez mais baixos.
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A publicidade fala do automóvel, suponhamos, como uma bênção ao alcance de todos. Um direito universal, uma conquista democrática? Se isto fosse verdade e todos os seres humanos pudessem transformar-se em feliz es proprietários deste talismã de quatro rodas, o planeta sofreria de morte súbita por falta de ar. E, antes, deixaria de funcionar por falta de energia. O mundo já queimou, num bocadinho, a maior parte do petróleo que se tinha formado ao longo de milhões de anos. Fabricam-se carros, um após outro, ao mesmo ritmo que as batidas do coracão e os carros estão a devorar mais de metade de todo o petróleo que o mundo produz anualmente.
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Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável; uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, logo após nascerem, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas, para que outro mundo nos vamos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na história de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque, estando mal-humorado, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para caçar parvos. Os que tem o manípulo simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria da pessoas consome pouco, pouquinho e nada necessariamente para garantir a existência da pouca Natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há Natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.Os presidentes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, um passe de mágica que nos transformaria a todos em prósperos membros do reino do esbanjamento, deveriam ser processados por burla e por apologia do crime. Por burla, porque prometem o impossível. Se todos consumíssemos como consomem os espremedores do mundo, ficaríamos sem mundo. E por apologia do crime: este modelo de vida que se nos oferece como grande orgasmo da vida, estes delírios do consumo que dizem ser a contra-senha da felicidade, estão a pôrnos o corpo doente, estão a envenenar-nos a alma e estão a deixar-nos sem casa: aquela casa que o mundo quis ser quando ainda não era.