sábado, 6 de janeiro de 2007

Lições da Sociedade de Consumo

O suplício de Tântalo atormenta os pobres. Con­denados a sede e à fome, estão também condenados a contemplar os manjares que a publicidade ofere­ce. Quando aproximam a boca ou esticam a mão, essas maravilhas afastam-se. E se apanham alguma, lançando-se ao assalto, vão parar à cadeia ou ao ce­mitério.Manjares de plástico, sonhos de plástico. E de plástico o paraíso que a televisão promete a todos e a poucos concede. Ao seu serviço estamos. Nesta civi­lização, onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram sequestrados pelos meios: as coisas compram-te, o automóvel con­duz-te, o computador programa-te e a televisão vê-te.
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Globalização, bobalização
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Até há alguns anos, o homem que não devia nada a nin­guém era virtuoso exemplo de honestidade e vida laboriosa. Hoje, é um extraterrestre. Quem não deve não é. Devo, logo existo. Quem não é digno de crédito não merece nome nem rosto: o cartão de crédito prova o direito à existência. Dívi­das: isso tem quem nada tem; uma pata metida nessa ratoeira há-de ter qualquer pessoa ou país que pertença a este mundo.
O sistema, transformado em sistema financeiro, multipli­ca os devedores para multiplicar os consumidores. Dom Karl Marx, que há mais de um século as viu aproximar-se, adver­tiu para o facto de a tendência para a queda das margens de lucro e a tendência para a superprodução obrigarem o siste­ma a crescer sem limites e a estender até à loucura o poder dos parasitas da «moderna bancocracia», que definiu como «um bando que não sabe nada de produção nem tem nada a ver com ela».
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A explosão do consumo no mundo actual faz mais baru­lho que todas as guerras e arma mais confusão que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: “quem bebe à conta embebeda-se a dobrar”. A farra aturde e turva a vi­são; esta tão grande bebedeira universal parece não ter limi­tes nem no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo faz muito barulho, como o tambor, porque é vazia; e na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o bêbe­do acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que tem que pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe são impostas pelo sistema que as gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões precisam de ar, e, por seu turno, precisam que andem de rastos, como andam, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
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O sistema fala em nome de todos, a todos dirige as suas imperiosas or­dens de consumo, entre todos difunde a febre compradora; mas nem pensar: para quase todos, esta aventura começa e acaba no ecrã do televisor. A maioria, que se endivida para ter coi­sas, acaba por ter muito mais que dívidas para pagar, dívidas que geram novas dívidas, e acaba por consumir fantasias que por vezes se materializam a delinquir.
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A difusão em massa do crédito, avisa o sociólogo Tomás Moulian, tornou possível que a cultura quotidiana do Chile gire à volta dos símbolos do consumo: a aparência como nú­cleo da personalidade, o artifício como modo de vida, «a uto­pia a prazo de quarenta e oito meses». O modelo consumista foi-se impondo, ao longo dos anos, desde que em 1973 os jets Hawker Hunter bombardearam o palácio presidencial de Sal­vador Allende e o general Augusto Pinochet inaugurou a era do milagre. Um quarto de século depois, no início de 98, The New York Times explicou que esse golpe de Estado tinha dado início à «transformação do Chile, que era uma república das bananas estancada e se transformou na estrela económica da América Latina».
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Quantos chilenos são iluminados por esta estrela ? Um quarto da população sobrevive em estado de pobreza absolu­ta e o senador democrata-cristão Jorge Lavandero demonstrou que os cem chilenos mais ricos do mundo ganham mais do que tudo o que o Estado gasta anualmente em serviços sociais. O jornalista norte-americano Marc Cooper encontrou muitos impostores no paraíso do consumo: chilenos que se deixam assar com as janelas fechadas para fingir que têm ar condicionado no automóvel, ou que falam por telemóveis de brinque­do, ou que usam o cartão de crédito para comprar batatas ou umas calças em doze prestações. O jornalista também des­cobriu alguns trabalhadores zangados nos supermercados Jumbo: aos sábados de manhã, há pessoas que enchem o carrinho até ao cimo com os artigos mais caros, se passeiam nos corredores a exibir-se por algum tempo e depois abandonam o carrinho repleto e saem pela saída lateral sem comprar nem uma pastilha elástica.
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O direito ao esbanjamento, privilégio de poucos, diz ser liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e dir-te-ei quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as gali­nhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para crescerem mais depressa. Nas fábricas de ovos, às galinhas também está interdita a noite. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e a angústia de pagar.Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, ma: é muito bom para a indústria farmacêutica. Os Estados Uni­dos consomem metade dos sedativos, ansiolíticos e restantes drogas químicas vendidas legalmente no mundo, e mais de metade das drogas proibidas vendidas ilegalmente, o que não é pouco se se tiver em conta que os Estados Unidos sornam apenas cinco por cento da população mundial.
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«Gente infeliz a que vive a comparar-se,,, lamenta uma mulher no bairro de El Buceo, em Montevideu. A dor de já não ser, outrora cantada pelo tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um homem pobre. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bair­ro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro confirma, na cida­de dominicana de San Francisco de Macorís: «Os meus irmãos trabalham para as marcas. Passam a vida a comprar etiquetas e a suar em bica para pagar as prestações.,,
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, a escala gigantesca, impõe em todo o lado as suas pautas de con­sunlo obrigatórias. Esta ditadura da uniformização obrigatória' é mais devastadora que qualquer ditadura de partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz- os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
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O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica, The Lancet, na última década a« obesidade severa» cres­ceu quase trinta por cento entre a população jovem dos paí­ses mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou em quarenta por cento nos últimos de­zasseis anos; de acordo com investigação recente do entro de Ciências da Saúde da Universidade de Colorado. O país que inventou as comidas e as bebidas light, a diet food e os ali­mentos fat free possui a maior quantidade de gordos do mun­do. O consumidor exemplar só desce do automóvel para trabalhar e para ver televisão. Sentado diante do pequeno ecrã, passa quatro horas por dia a devorar comida de plástico.
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Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a colonizar os paladares do mundo e a reduzir a cinzas as tradi­ções da cozinha local. Os hábitos da boa comida, que vêm de longe, têm, nalguns países, milhares de anos de refinamento e de diversidade e constituem um património colectivo que, de algum modo, se encontra nos fogões de todos e não ape­nas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses traços de identi­dade cultural, essas festas da vida, estão a ser esmagados, de modo fulminante, pela imposição do sabor químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast fond. A plastificação da comida à escala mundial, obra da MacDonald's, da Burger King e doutras fábricas, viola com êxito o direito à au­todeterminação da cozinha: sagrado direito, porque a boca é uma das portas da alma.
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O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os mús­culos, que a Coca-Cola oferece eterna juventude e que o menu da MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atle­ta. O imenso exército da MacDonald's dispara hambúrgueres para as bocas das crianças e dos adultos em todo o planeta. O duplo arco desse M serviu de estandarte, durante a recen­te conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante da McDonald's de Moscovo, inaugurada em 1990 com bombos e pratos, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta elo­quência como o desmoronamento do Muro de Berlim.
Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtu­des do mundo livre, nega aos empregados a liberdade de se filiarem em qualquer sindicato.
A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera.
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Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empre­sa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restau­rante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas em 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cida­de próxima de Vancôver, conseguiram essa conquista, digna do Guiness.Em 1996, os militantes ecologistas britânicos, Helen Steel e David Morris, encetaram um processo judicial contra a McDonald's. Acusaram a empresa por maus tratos aos traba­lhadores, violação da Natureza e manipulação comercial das emoções infantis: os empregados são mal pagos, trabalham em más condições e não podem associar-se; a produção de carne para os hambúrgueres arrasa as florestas tropicais e despoja os indígenas; e a publicidade multimilionária atenta contra a saúde pública, induzindo as crianças a preferir alimentos de muito duvidoso valor nutritivo. A disputa, que a princípio parecia a picada de um mosquito no lombo de um elefante, teve bastante repercussão, ajudou a difundir toda esta infor­mação que a opinião pública ignora e está a tornar-se uma cara e longa dor de cabeça para uma empresa habituada à impuni­dade do poder. Ao fim e ao cabo, é do poder que se trata: a McDonald's emprega, nos Estados Unidos, mais gente que toda a indústria metalomecânica e, em 1997, as suas vendas superaram a soma das exportações totais da Argentina e da Hun­gria. O Big Mac é tão mas tão importante que o seu preço é usado em vários países como unidade de valor para as transac­çbes financeiras internacionais: a comida virtual orienta a eco­nomia virtual. Segundo a publicidade da McDonald's no Brasil, o Big Mac, produto de topo da casa, é como o amor: dois cor­pos que se abraçam e se beijam a escorrer molho tártaro, exci­tados pelo queijo e o pepino, enquanto os seus corações de cebola ardem, estimulados pela verde esperança da alface.
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Preços baixos, tempo breve: as máquinas humanas rece­bem o seu combustível e imediatamente retornam ao sistema produtivo. Numa destas gasolineiras trabalhou, em 1983, o escritor alemão Günther Wallraf£ Era um dos McDonald's da cidade de Hamburgo, que é inocente das coisas que se fazem em seu nome. Wallraff trabalhou a correr sem parar, salpica­do pelas gotas de óleo a ferver: uma vez descongelados, os hambúrgueres têm dez minutos de vida. Depois, empestam. Têm que ser atirados para a chapa sem perda de tempo. Tudo tem o mesmo sabor: as batatas fritas, as verduras, a carne, o peixe, o frango. E um sabor artificial, ditado pela indústria química, que também se ocupa a esconder, com corantes, os vinte e cinco por cento de gordura que a carne contém. Esta porcaria é a comida de maior êxito do nosso século. Os seus mestres de cozinha formam-se na Hamburguer University, em Elk Grove, Ilinbis. Mas os donos do negócio, segundo fontes bem informadas, preferem os caríssimos restaurantes que ofe­recem os mais sofisticados pratos disso a que se há-de chamar comida étnica: sushi, thai, persa, javanesa, hindu, mexicana... Democracia não é desleixo.
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As massas consumidoras recebem ordens numa língua universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não conseguiu. Qualquer um percebe, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quartel do século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Gra­ças a eles, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de ócio vai-se tornando tem­po de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o tele­visor tem a palavra. Comprado a prestações, este animalzinho prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtu­des dos automóveis de último modelo, e pobres e ricos ficam a saber das vantajosas taxas de juro que tal ou tal banco oferece.
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Pobre é o que não tem ninguém, diz e repete uma velha que fala sozinha nas ruas de São Paulo. A gente é cada vez mais muita e cada vez está mais só. Os solitários tornados muitos constituem multidões que se apertam nas cidades:
- Poderia, por favor, tirar o cotovelo do meu olho?
Os peritos sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuros contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume beija-te, o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de con­sumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. Os bura­cos no peito fecham-se atafulhando-os de coisas, ou sonhando com fazê-lo. E as coisas não podem só abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem-te e salvam-te do anonimato multitudinário. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou raramente o faz. Isso é o de menos. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem quer transformar-se comprando esta loção para depois da barba?
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O criminologista Anthony Platt observou que os delitos de rua não são apenas fruto da pobreza extrema. São também fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade; mas qualquer telespectador pobre tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão semelhante a ela que a diferença é mera questão de especialistas. Segundo o historiador Eric Hobsbawn, o século xx pós fim a sete mil anos de vida humana, centrada na agricultura desde que apareceram os primeiros cultivos no final do Paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses tornam-se citadinos, Na América Latina, temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de ex­portação e pela erosão das suas terrinhas, os camponeses in­vadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todo o lado, mas sabem por experiência que atende nas grandes ur­bes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um porvir para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém-chegados é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é gratuito e que os mais caros artigos de luxo são o ar e o silêncio.
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Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano de Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas gostam de juntar-se». Jun­tar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem ?. Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra­-se com o mundo ? E as pessoas, encontram-se com pessoas ? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quantas pessoas se encontram com as coisas?
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O mundo inteiro tende a transformar-se num ecrã de te­levisão, onde se vêem as coisas, mas não se tocam. As merca­dorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As paragens de autocarro e as estações de comboio, que até há pouco eram pontos de encontro entre pessoas, estão agora a transformar-se em espaços de exibição comercial.O shopping center, o shopping mall, montra de todas as montras, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acodem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a mino­ria compradora se submete ao bombardeamento da oferta in­cessante e extenuante. A gentalha, que sobe e desce pelas escadas rolantes, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vin­dos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a fotografia, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do prócere na praça. Beatriz Sano observou que os habitantes dos bairros suburbanos aco­dem ao center, ao shopping center, como antes acudiam ao cen­tro.
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O tradicional passeio de fim-de-semana ao centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes oásis ur­banos. Lavados, engomados e penteados, vestidos com roupa domingueira, os visitantes vêm a uma festa para a qual não são convidados, mas podem ser mirones. Famílias inteiras em­preendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma alucinante paisagem de modelos, marcas e etiquetas.
A cultura de consumo, cultura do efémero, condenação ao desuso imediato. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhe­cem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Neste final de século onde a única coisa permanente é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz, ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã sabe-se lá, e todo o trabalhador é um desempregado em potência. Paradoxalmen­te, os shopping centers, reinos de fugacidade, oferecem a mais bem sucedida ilusão de segurança. Eles existem fora do tem­po, sem idade e sem raízes, sem noite e sem dia e sem memó­ria, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
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Nestes santuários do bem-estar pode fazer-se tudo, sem necessidade de sair para a intempérie suja e ameaçadora, Até dormir se pode, segundo os últimos modelos de shoppings, que em Los Angeles e em Las Vegas incluem serviços de hotelaria e ginásios. Os shoppings, que não dão nem pelo frio nem pelo calor, estão a salvo da contaminação e da violência. Michael A. Petti publica os seus conselhos científicos na imprensa mundial, numa difundida série chamada Viva mais. Nas ci­dades com má qualidade do ar, o dr. Petti aconselha a quem quer viver mais: «Caminhe dentro de um centro centro comercial». O cogumelo atómico da contaminação pende sobre cidades como o México, São Paulo ou Santiago do Chile, e nas esqui­nas o crime ameaça; mas neste frígido mundo fora do inun­do, ar asséptico, passeios vigiados, pode-se respirar e caminhar e comprar sem riscos.
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Os shoppings são todos mais ou menos iguais, em Los An­geles ou em Banguecoque, em Buenos Aires ou em Glas­gow. Esta unanimidade não os impede de competir na inven­ção de novos ímanes para apanhar clientes. Por exemplo, à revista Veja exaltava assim, em finais de 91, uma das novida­des do shopping Praia das Belas, em Porto Alegre: «Para o con­forto dos bebes, oferecem-se-lhes carrinhos, facilitando assim o passeio destes pequenos consumidores». Mas a segurança é o artigo mais importante que todos os shopping centers ofere­cem. A segurança, mercadoria de luxo, está ao alcance de qualquer um que penetre nestes bunkers. Na sua infinita ge­nerosidade, a cultura de consumo oferece-nos o salvo-conduto que nos permite fugir do inferno das ruas. Rodeadas de imen­sas praias de estacionamento, onde os automóveis aguardam, estas ilhas oferecem espaços fechados e protegidos. Aí as pes­soas cruzam-se com as pessoas, chamadas pelas vozes do consumo, como antes as pessoas se encontravam com outras pessoas chamadas pela vontade de se verem, nos cafés ou nos espa­ços abertos das praças, dos parques e dos velhos mercados: nos nossos dias, essas intempéries estão demasiado expostas aos riscos da violência urbana. Nos shoppings, não há perigo. A po­lícia pública e a polícia privada, a polícia visível e a polícia invisível, ocupam-se de pôr os suspeitos na rua ou na cadeia.
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Os pobres que não sabem disfarçar a sua perigosidade congé­nita e, sobretudo, os de pele escura, podem ser culpados até não se provar a sua inocência. E, se são crianças, pior. A pe­rigosidade é inversamente proporcional à idade. Já em 1979, um relatório da polícia colombiana, apresentado ao congres­so policial sul-americano, explicava que a polícia infantil não tinha tido outro remédio senão abandonar a sua obra social para «atalhar as maldades» dos menores perigosos e «evitar o estorvo que a sua presença causa nos centros comerciais».
Estes gigantescos supermercados, transformados em cida­des em miniatura, são também vigiados pelos sistemas electró­nicos de controlo, olhos que vêem sem serem vistos, câmaras ocultas que seguem os passos da multidão que deambula por entre as mercadorias; mas a electrónica não serve apenas para vigiar e punir os indesejáveis que podem sucumbir à tentação dos frutos proibidos. A tecnologia moderna também serve para que os consumidores consumam mais. Na era cibernética, quando o direito à cidadania se fundamenta no dever do con­sumo, as grandes empresas espiam os consumidores e bombar­deiam-nos com a sua publicidade. Os computadores oferecem uma radiografia de cada cidadão. Pode-se saber quais são os seus hábitos e os seus gostos e gastos, através do uso que cada cidadão faz do cartão de crédito, das caixas automáticas e do correio electrónico.
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De facto, isto é o que acontece de cada vez que nos países de mais alto desenvolvimento, onde a manipulação comercial do universo on line está a violar im­punemente a vida privada para a pôr ao serviço do mercado. Torna-se cada vez mais difícil, por exemplo, que um cidadão norte-americano possa manter em segredo as compras que faz, as doenças de que padece, o dinheiro que tem e o dinheiro que deve: a partir desses dados, não é assim tão difícil dedu­zir que novos serviços poderia contratar, em que novas dívi­das poderia meter-se e quantas novas coisas poderia comprar.Por muito que cada cidadão compre, será sempre pouco em relação com o muito que é necessário vender. Nestes últimos anos, por exemplo, a indústria automóvel está a fabricar mais carros do que a procura absorve. As grandes cidades latino-ame­ricanas compram mais e mais. Até onde? Há um tecto que não podem ultrapassar, submetidas como estão à contradição entre as ordens que recebe o mercado interno e as ordens que trans­mite o mercado internacional: a contradição entre a obsessão de consumir, que requer salários cada vez mais elevados, e a obrigação de competir, que exige salários cada vez mais baixos.
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A publicidade fala do automóvel, suponhamos, como uma bênção ao alcance de todos. Um direito universal, uma con­quista democrática? Se isto fosse verdade e todos os seres humanos pudessem transformar-se em feliz es proprietários des­te talismã de quatro rodas, o planeta sofreria de morte súbita por falta de ar. E, antes, deixaria de funcionar por falta de ener­gia. O mundo já queimou, num bocadinho, a maior parte do petróleo que se tinha formado ao longo de milhões de anos. Fabricam-se carros, um após outro, ao mesmo ritmo que as batidas do coracão e os carros estão a devorar mais de meta­de de todo o petróleo que o mundo produz anualmente.
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Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descar­tável; uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, logo após nascerem, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publi­cidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas, para que outro mundo nos vamos mudar? Estamos todos obrigados a acredi­tar na história de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque, estando mal-humorado, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para caçar parvos. Os que tem o manípulo simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria da pessoas consome pouco, pouquinho e nada necessa­riamente para garantir a existência da pouca Natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um de­feito a superar: é uma necessidade essencial. Não há Natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.Os presidentes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, um passe de mágica que nos transforma­ria a todos em prósperos membros do reino do esbanjamento, deveriam ser processados por burla e por apologia do crime. Por burla, porque prometem o impossível. Se todos consumíssemos como consomem os espremedores do mundo, ficaríamos sem mundo. E por apologia do crime: este modelo de vida que se nos oferece como grande orgasmo da vida, estes delírios do consumo que dizem ser a contra-senha da felicidade, estão a pôr­nos o corpo doente, estão a envenenar-nos a alma e estão a deixar-nos sem casa: aquela casa que o mundo quis ser quando ainda não era.