sábado, 30 de dezembro de 2006

Educando pelo Medo

A escola do mundo às avessas é a mais demo¬crática das instituições educativas. Não exige exame de admissão, não cobre matrícula e ministra os seus cursos gratuitamente, a todos e em qualquer lugar, assim na terra como no céu: por alguma razão é filha do sistema que conquistou, pela primeira vez em toda a história da Humanidade, o poder universal. Na escola do mundo às avessas, o chumbo aprende de a flutuar e a cortiça a afundar-se. As víboras aprendem a voar e as nuvens aprendem a rastejar pelos caminhos.
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Os modelos do êxito
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O mundo às avessas premeia às avessas: despreza a hones­tidade, pune o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Os seus mestres caluniam a nature­za: a injustiça, dizem, é a lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais prestigiados do corpo docente, fala da «taxa natural de desemprego». Por lei natural, provam Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros encontram-se nos de­graus mais baixos da escala social. Para explicar o êxito dos seus negócios, John D. Rockfeller costumava dizer que a na­tureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis; e mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam a acreditar que Charles Darwin escreveu os seus livros para anunciar a glória deles.
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Sobrevivência dos mais aptos' A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassi­no, é virtude humana quando serve para que as grandes empresas digiram as pequenas e para que os países fortes devo­rem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando qual­quer pobre tipo sem trabalho sai à procura de comida com uma faca na mão. Os doentes da patologia anti-social, loucura e perigo que cada pobre contém, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. Os delinquentes da treta aprendem o que sabem levantando o olhar, a partir de baixo em direcção aos cumes; estudam o exemplo dos triunfadores e, na medida do possível, fazem o que podem para lhes imitarem os méritos. Mas «os lixados estarão sempre lixados», como dizia Emilio Azcárraga, que foi ame) e senhor da televisão mexicana. As pos­sibilidades de um banqueiro que esvazia um banco possa des­frutar, em paz, dos frutos do seu trabalho são directamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão rouba um banco vá parar à prisão ou ao cemitério.
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Quando um delinquente mata por alguma dívida por pa­gar, a execução chama-se ajuste de contas; chama-se plano de ajustamento a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional decide liquidá-lo. A malfeitoria fi­nanceira sequestra os países e limpa-os se não pagarem o res­gate; quando comparados, qualquer bandido se revela mais inofensivo do que Drácula debaixo do sol. A economia mun­dial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os or­ganismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres, e contra todos os pobres de todos os países, com uma frieza pro­fissional e uma impunidade que humilham o melhor dos bom­bistas.
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A arte de enganar o próximo, que os vigaristas praticam caçando desprevenidos pelas ruas, chega ao sublime quando alguns políticos de êxito exercitam o seu talento. Nos subúr­bios do mundo, os chefes de Estado vendem os restos de colec­ção e os retalhos dos seus países a preço de liquidação de final de temporada, tal como nos subúrbios das cidades os de­linquentes vendem, a preço vil, o produto dos seus assaltos.
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Os pistoleiros que são contratados para matar realizam, em pequena escala, o mesmo serviço que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes que são elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes, à coca nas es­quinas, desferem golpes que são a versão artesanal dos golpes de sorte assestados pelos grandes especuladores que espoliam multidões a golpes de computador. Os violadores que mais ferozmente violam a Natureza e os direitos humanos nunca são presos. Têm as chaves das cadeias.
No mundo tal como está, o mundo às avessas, os países que custeiam a paz universal são aqueles que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos restantes países; os bancos mais prestigiados são os que mais narcodólares lavam e os que mais dinheiro roubado guardam; as indústrias mais florescentes são as que mais envenenam o planeta; e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impu­nidade e felicitações os que matam mais gente em menos tem­po, os que ganham mais dinheiro com menos trabalho e os que destroem a maior quantidade de Natureza com menos custos.
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Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas gran­des cidades do mundo às avessas. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem pela an­siedade de ter as coisas que não têm e outros não dormem pelo pânico de perderem as coisas que têm. O mundo às avessas treina-nos para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, reduz-nos à solidão e consola-nos com drogas químicas e com amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de tédio, se uma bala perdida não nos abreviar a exis­tência.
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Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre estas ameaças de desgraça, a nossa única liberdade possível ? O mun­do às avessas ensina-nos a padecer a realidade em vez de a mudar, a esquecer o passado em vez de o ouvir e a aceitar o futuro em vez de o imaginar: assim age o crime e assim o re­comenda. Na sua escola, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem medalha que não tenha reverso, nem tempestade que não traga bonança, nem desâ­nimo que não procure ânimo. Também não há escola que não encontre a sua contra-escola.

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