domingo, 31 de dezembro de 2006

Lições Contra os Vícios Inúteis

O desemprego multiplica a delinquência e os salários humilhantes estimulam-na. Nunca teve tan­ta actualidade o provérbio que diz: Ó esperto vive do tolo e o tolo do trabalho.) Em contrapartida, já ninguém diz, porque ninguém acreditaria, aquela conversa do trabalha e prosperarás.
O direito laboral está a reduzir-se ao direito de trabalhar pelo que quiserem pagar-te e nas condições que te quiserem impor. Não existe no mundo mer­cadoria mais barata do que a mão-de-obra. Enquanto caem os salários e aumentam os horários, o merca­do laboral vomita gente. Toma-o ou deixa-o, que a fila é comprida.
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Emprego e desemprego no tempo do medo
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A sombra do medo morde os calcanhares do mundo, que anda de um lado para o outro, aos tombos, a dar os últimos passos em direcção a este final de século. Medo de perder: perder o trabalho, perder o dinheiro, perder a comida, perder a casa, perder: não há exorcismo que possa proteger seja quem for da súbita maldição da má sorte. Até o mais ganhador pode, às duas por três, transformar-se em perdedor, um fracassado indigno de perdão e de compaixão.
Quem se salva do terror da desocupação? Quem não teme ser um náufrago das novas tecnologias, ou da globalização, ou de qualquer outro dos muitos mares revoltos do mundo ac­tual ? As ondas, furiosas, batem: a ruína ou a fuga das indús­trias locais, a concorrência de mão-de-obra mais barata de outras latitudes, ou o implacável avanço das máquinas que não exibem salário, nem férias, nem feriados, nem reforma, nem indemnização por despedimento, nada a não ser a electrici­dade que as alimentam.
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O desenvolvimento da tecnologia não está a servir para multiplicar o tempo de ócio e os espaços de liberdade, mas está sim a multiplicar a desocupação e a semear o medo. E universal o pânico perante a possibilidade de receber a carta que lamenta comunicar-lhe que nos vemos obrigados a prescindir dos seus serviços devido à nova política de custos, ou devido à inadiável reestruturação da empresa, ou porque sim, que nenhum eu­femismo alivia o fuzilamento. Qualquer um pode cair, em qualquer momento e em qualquer lugar; qualquer um pode transformar-se, de um dia para o outro, num velho de qua­renta anos.
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No seu relatório sobre os anos 96 e 97, diz a OIT, a Orga­nização Internacional do Trabalho, que «a evolução do em­prego no mundo continua a ser desanimadora». Nos países industrializados, o desemprego continua a ser muito alto e aumentam as desigualdades sociais, e, nos chamados países em desenvolvimento, verifica-se um progresso espectacular do desemprego, uma pobreza crescente e uma descida do nível de vida. «Daí que se propague o medo», conclui o relatório. E o medo propaga-se: o trabalho ou o nada. À entrada de Auschwitz, o campo de extermínio nazi, um grande cartaz dizia: O trabalho liberta. Mais de meio século depois, o funcionário ou o operário que tem trabalho deve agradecer o favor que alguma empresa lhe faz, permitindo-lhe perder a alma, dia após dia, carne de rotina, no escritório ou na fábrica. Encontrar trabalho, ou mantê-lo, embora sem férias, nem reforma, nem nada, e apesar de ser a troco de um salário de merda, festeja­-se como se fosse um milagre.
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São Caetano é o que mais gente congrega na Argentina. Acodem as multidões a implorar trabalho ao patrono dos desempregados. Nenhum outro santo nem santa tem tanta clien­tela. Entre Maio e Outubro de 97, apareceram novos postos de trabalho. Não se sabe se foi obra de São Caetano ou da democracia: vinham aí as eleições legislativas e o governo ar­gentino intimidou o santo repartindo meio milhão de empre­gos à direita e à esquerda. Mas os empregos, que pagavam salários de duzentos dólares por mês, duraram pouco mais do que a campanha eleitoral. Algum tempo depois, o presidente Menem aconselhou os argentinos a jogarem golfe, porque dis­trai e relaxa os nervos.
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Cada vez há mais desocupados no mundo. Sobra cada vez mais gente ao mundo. Que vão fazer os donos do mundo com tanta Humanidade inútil ? Vão mandá-la para a Lua? No iní­cio de 98, as gigantescas manifestações em França, Alemanha, Itália e outros países europeus, ocuparam as primeiras páginas da imprensa mundial. Alguns desempregados desfilaram me­tidos em sacos do lixo pretos: era a encenação do drama do trabalho no mundo actual. Na Europa ainda existem subsídios que aliviam a sina dos desocupados; mas o facto é que um em cada quatro jovens não arranja emprego fixo. O trabalho à socapa, à margem da lei, triplicou na Europa, no último quar­to de século. Na Grã-Bretanha, são cada vez mais numerosos os trabalhadores que permanecem em casa, sempre disponí­veis e sem receber nada, até o telefone tocar. Então trabalham uns tempos, ao serviço de uma agência de contratação. De­pois, voltam para casa e, sentados, esperam que o telefone to­que novamente.
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A globalização é uma cartola na qual as fábricas desapa­recem por artes de mágica, fugidas para os países pobres; a tecnologia, que reduz vertiginosamente o tempo de trabalho necessário para a produção de cada coisa, empobrece e sub­juga os trabalhadores em vez de os libertar da necessidade e da servidão; o trabalho deixou de ser imprescindível para a reprodução do dinheiro. São muitos os capitais desviados para os investimentos especulativos. Sem transformar a matéria, e sem sequer tocar nela, o dinheiro reproduz-se mais fecunda­mente a fazer amor consigo mesmo. A Siemens, uma das maiores empresas industriais do mundo, está a ganhar mais com os seus investimentos financeiros do que com as activi­dades produtivas.
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Nos Estados Unidos há muito menos desemprego que na Europa, mas os novos empregos são precários, mal pagos e sem protecção social. «Verifico-o entre os meus alunos-, diz Noam Chomsky. «Eles temem que, se não se portarem como deve ser, nunca conseguirão trabalho e isto tem um efeito discipli­nador.» Apenas um em cada dez trabalhadores tem o privilé­gio de ter um emprego permanente, a tempo inteiro, nas quinhentas empresas norte-americanas de maior dimensão. Em cada dez novos empregos disponibilizados na Grã-Bretanha, nove são precários. A história está a dar um salto de dois sé­culos, mas para trás: a maioria dos trabalhadores não tem, no mundo actual, estabilidade laboral nem direito a indemniza­ção por despedimento; e a insegurança laboral faz cair os sa­lários. Seis em cada dez norte-americanos recebem salários inferiores aos salários de há um quarto de século, apesar de nestes vinte e cinco anos a economia dos Estados Unidos ter crescido quarenta por cento.
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Apesar disto, milhares e milhares de trabalhadores braçais mexicanos, os espaldas mojadas, os costas molhadas, continuam a atravessar o rio da fronteira e continuam a arriscar a vida. Em duas décadas duplicou-se a brecha entre os salários dos Estados Unidos e os do México. A diferença era de quatro vezes; agora, é de oito. Como bem sabem os capitalistas que emigram para sul em busca de braços baratos, e como bem sabem os braços baratos que tentam emigrar para norte, o tra­balho é, no México, a única mercadoria que desce de preço mensalmente. Nestes últimos vinte anos, uma boa parte da classe média caiu na pobreza, os pobres caíram na miséria e os miseráveis caíram das estatísticas. A estabilidade dos que têm trabalho está garantida por lei, mas, de facto, depende da Virgem de Guadalupe.
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A precariedade do trabalho, factor principal, juntamente com o desemprego, para a crise dos salários, é universal como a gripe. Nem sequer os trabalhadores especializados nos secto­res mais sofisticados e dinâmicos da economia mundial respi­ram em paz. Também aí a contratação a prazo está a substituir velozmente os empregos fixos. Nas telecomunicações e na elec­trónica, já estão a funcionar as empresas virtuais, que precisam de muito pouca gente. As tarefas são executadas de compu­tador para computador, sem os trabalhadores se conhecerem entre si e sem conhecerem os empregadores, fugitivos fantas­mas que não devem obediência a nenhuma legislação nacional. Os profissionais altamente qualificados estão tão condenados à incerteza e à instabilidade no trabalho quanto qualquer outro, embora ganhem muito mais e embora sejam meninos mimados, sempre abstractos, pelas revistas que elogiam os milagres da tecnologia na era da felicidade universal.
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O medo da perda do emprego e a angústia de não o en­contrar não são alheios a um disparate registado pelas esta­tísticas e que só pode parecer normal num mundo que perdeu todos os parafusos. Nos últimos trinta anos, os horários de tra­balho declarados, que costumam ser inferiores aos horários reais, aumentaram significativamente nos Estados Unidos, Canadá e Japão, e apenas diminuíram, um pouco, nalguns países euro­peus. Este é um aleivoso atentado contra o senso comum le­vado a cabo pelo mnundo às avessas: o assombroso aumento da produtividade operado pela revolução tecnológica, não só não se traduz num aumento proporcional dos salários como nem sequer diminui os horários de trabalho nos países de mais alta tecnologia. Nos Estados Unidos, as frequentes sondagens in­dicam que o trabalho é, actualmente, a principal fonte de stress, muito acima dos divórcios e do medo da morte, e, no Japão, o karoslli, o excesso de trabalho, está a matar dez mil pessoas por ano.
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Quando o governo da França decidiu, em Maio de 98, re­duzir a semana laboral de 39 para 35 horas, dando assim uma elementar lição de bom senso, a medida desencadeou clamo­res de protesto entre empresários, políticos e tecnocratas. Na Suíça, que não tem problemas de desemprego, coube-me assistir, há algum tempo, a um acontecimento que me deixou pasmado. Um plebiscito propôs trabalhar menos horas sem diminuição dos salários e os suíços votaram contra. Lembro­-me que não percebi, confesso que ainda agora não percebo. O trabalho é uma obrigação universal desde que Deus con­denou Adão a ganhar o pão com o suor do rosto, mas não é preciso tomar a vontade divina tão a peito. Suspeito que este fervor laboral tem muito a ver com o terror do desemprego, embora, no caso da Suíça, o desemprego seja uma ameaça vaga e longínqua, e com o pânico do tempo livre. Ser é ser útil, para ser tem que se ser vendível. O tempo que não se traduz em dinheiro, tempo livre, tempo de vida vivida pelo prazer de viver e não pelo dever de produzir, gera medo. Ao fim e ao cabo, isto nada tem de novo. O medo foi sempre, juntamente com a cobiça, um dos dois motores mais activos do sistema que ou­trora se chamava capitalismo.
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O medo do desemprego permite que os direitos laborais sejam impunemente burlados. A jornada máxima de oito ho­ras já não pertence à ordem jurídica, mas sim ao âmbito lite­rário, onde brilha, entre outras, a poesia surrealista; e são já relíquias, dignas de serem exibidas em museus de arqueologia, as contribuições patronais para a reforma dos trabalhadores, a assistência médica, o seguro contra acidentes de trabalho, as férias pagas, o subsídio de Natal e as contribuições familia­res. Os direitos laborais, legalmente consagrados como tendo valor universal, tinham sido, noutros tempos, fruto de outros medos: o medo das greves de operários e medo da ameaça da revolução social, que tão ameaçadora parecia. Mas aquele poder assustado, o poder de ontem, é o poder que hoje em dia assusta, para ser obedecido. E assim se rifam, num instantinho, as conquistas operárias que custaram dois séculos.
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O medo, pai de família numerosa, também gera ódio. Nos países do Norte do Mundo, costuma traduzir-se em ódio aos estrangeiros que oferecem os braços a preços de desespero. É a invasão dos invadidos. Eles vêm das terras onde uma e mil vezes desembarcaram as tropas coloniais da conquista e as expedições militares de punição. Os que fazem, agora, esta via­gem ao contrário não são soldados obrigados a matar: são tra­balhadores obrigados a vender os braços na Europa ou no norte da América, seja a que preço for. Vêm da África, da Ásia, da América Latina e, nos últimos anos, depois da hecatombe do poder burocrático, também vêm do Leste europeu.
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Nos anos da grande expansão económica europeia e nor­te-americana, a prosperidade crescente exigia mais e mais mão­-de-obra e pouco importava que os braços fossem estrangei­ros, desde que trabalhassem muito e ganhassem pouco. Nos anos de recessão, ou de crescimento doente e ameaçado pela crise, os hóspedes inevitáveis tornaram-se intrusos indesejá­veis: cheiram mal, fazem barulho e tiram empregos. Esses trabalhadores, bodes expiatórios do desemprego e de todas as des­graças, estão também condenados ao medo.
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Várias espadas lhes pendem sobre a cabeça: a sempre iminente expulsão do país a que vieram parar, fugindo da vida dura, e a sempre possível explosão do racismo, as suas advertências sangrentas, os seus castigos: turcos queimados, árabes esfaqueados, negros balea­dos, mexicanos espancados. Os imigrantes pobres executam as tarefas mais pesadas e mais mal pagas, nos campos e nas ruas. Depois das horas de serviço, vêm as horas de perigo. Nenhu­ma tinta mágica os cobre para os tornar invisíveis.
Paradoxalmente, muitos trabalhadores do Sul do Mundo emigram para Norte, ou tentam contra ventos e marés essa aventura proibida, enquanto muitas fábricas do Norte emigram para o Sul. O dinheiro e as pessoas cruzam-se no caminho. O dinheiro dos países ricos viaja para os países pobres, atraí­do pelas jornadas de trabalho a um dólar e as jornadas sem horários, e os trabalhadores pobres viajam, ou quereriam via­jar, para os países ricos, atraídos pelas imagens de felicidade que a publicidade oferece ou a esperança inventa. O dinheiro viaja sem alfândegas e sem problemas; é recebido com beijos e flores e toques de trombetas. Os trabalhadores que emigram, pelo contrário, empreendem uma odisseia que, por vezes, ter­mina nas profundezas do Mediterrâneo ou do mar das Caraí­bas, ou nos rochedos do rio Bravo.
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Noutras épocas, enquanto Roma se apoderava de todo o Mediterrâneo e muito mais, os exércitos regressavam arrastan­do caravanas de prisioneiros de guerra. Esses prisioneiros trans­formavam-se em escravos e as caçadas de escravos empobreciam os trabalhadores livres. Quanto mais escravos havia em Roma, mais caíam os salários e mais difícil se tornava arranjar traba­lho. Dois mil anos mais tarde, o empresário argentino Enri­que Pescarmona fez um revelador louvor à globalização:
- Os asiáticos trabalham vinte horas por dia - declarou - por oitenta dólares por mês. Se quiser competir, tenho que recor­rer a eles. É o mundo globalizado. As raparigas filipinas, nos nos­sos escritórios de Hong Kong, estão sempre disponíveis. Não há sábados nem domingos. Se tiverem que fazer directas de vários dias sem dormir, fazem-no, e nunca cobram horas extraordinárias nem pedem nada.
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Meses antes desta elegia, tinha-se incendiado uma fábri­ca de bonecas em Banguecoque. As operárias, que ganhavam menos de um dólar por dia e que comiam e dormiam na fá­brica, morreram queimadas vivas. A fábrica estava fechada por fora, como os barracões no tempo da escravatura.
São numerosas as indústrias que emigram para os países pobres, à procura de braços, que os há baratíssimos e em abun­dância. Os governos desses países pobres dão as boas-vindas aos novos postos de trabalho, trazidos pelos messias do pro­gresso em bandeja de prata. Mas, em muitos desses países po­bres, o novo proletariado fabril labora em condições que evocam o nome que o trabalho tinha na época do Renas­cimento: tripalium, que era também o nome de um instrumento de tortura.0 preço de uma t-shirt com a imagem da princesa Pocahontas, vendida pela casa Disney, equivale ao salário de toda uma semana dos operários que coseu essa t-shirt no Haiti, a um ritmo de 375 t-shirts por hora.
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O Haiti foi o primeiro país do mundo a abolir a escravatura; e dois séculos depois desse feito, que muitos mortos custou, o país padece de escra­vatura assalariada. A cadeia McDonald's oferece brinquedos aos seus clientes infantis. Esses brinquedos são fabricados no Vietname, onde as operárias trabalham dez horas seguidas, com alpendres fechados a sete chaves, a troco de oitenta cêntimos. O Vietname tinha derrotado a invasão militar dos Estados Uni­dos; e um quarto de século depois daquele feito, que muitos mortos custou, o país padece de humilhação globalizada.
Por cada milhão de violações da lei que os inspectores cons­tatam em França, apenas treze são alvo de condenação no fi­nal dos processos. E, em quase todos os casos, a condenação consiste no pagamento de uma multa ridícula.
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A caçada aos braços já não carece de exércitos, como acon­tecia nos tempos coloniais. Disso se encarrega, sozinha, a mi­séria de que padece a maior parte do planeta. E a morte da Geografia: os capitais atravessam fronteiras à velocidade da luz, por obra e graça das novas tecnologias da comunicação e dos transportes, que eliminaram o tempo e as distâncias. E quan­do uma economia arrefece nalgum lugar do planeta," outras 77, economias espirram do outro lado do inundo.Em finais de 97 a desvalorização da moeda na Malásia implicou o sacrifício de milhares de postos de trabalho na indústria do calçado do sul do Brasil.
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Os países pobres estão metidos, de alma e coração, no con­curso universal do bom comportamento, para ver quem ofe­rece salários mais raquíticos e maior liberdade para envenenar o meio ambiente. Os países competem entre eles, mano a mano, para seduzir as grandes empresas multinacionais. As melhores condições para as empresas são as piores condições para o nível dos salários, da segurança no trabalho e da saúde da Terra e das pessoas. Ao longo e ao largo do mundo, os di­reitos dos trabalhadores estão a ser nivelados para baixo, en­quanto a mão-de-obra disponível se multiplica como nunca antes, nem nas piores épocas, tinha acontecido.
«A globalização tem ganhadores e perdedores», adverte um relatório das Nações Unidas. «Supõe-se que uma maré de ri­queza em ascensão levantará todos os barcos. Mas alguns po­dem navegar melhor que outros. Os iates e os transoceânicos estão de facto a levantar-se, em resposta às novas oportuni­dades, mas as balsas e os barcos a remos estão a meter água e alguns estão a afundar-se rapidamente». Os países tremem perante a possibilidade de que o dinheiro não venha, ou de que o dinheiro fuja. O naufrágio é uma realidade ou uma amea­ça que se traduz em pânico generalizado. Se não se portarem bem, dizem as empresas, vamos para as Filipinas, ou para a Tailândia, ou para a Indonésia, ou para a China, ou para Marte. Portar-se mal significa: defender a Natureza ou o que resta dela, reconhecer o direito à constituição de sindicatos, exigir o res­peito das normas internacionais e das leis locais, aumentar o salário mínimo.
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Em 1995, a cadeia de lojas GAP vendia, nos Estados Uni­dos, camisas made in El Salvador. Por cada camisola vendida a vinte dólares, os operários salvadorenhos recebiam 18 cênti­mos. Os operários, ou, melhor dizendo, as operárias, porque eram maioritariamente mulheres e crianças, que se matavam a trabalhar mais de catorze horas por dia no inferno das ofici­nas, organizaram um sindicato. A empresa contratista despe­diu trezentas e cinquenta. Veio a greve. Houve espancamentos da polícia, raptos, prisões. Em finais de 95, as lojas GAP anun­ciaram que se iam embora para a Ásia.
Na América Latina, a nova realidade do mundo traduz­-se num crescimento vertical do chamado sector informal da economia. O sector informal que, traduzido, significa trabalho à margem da lei, oferece 85 em cada novos cem postos de trabalho. Os trabalhadores fora da lei trabalham mais, ganham menos, não têm benefícios sociais e não se encontram prote­gidos pelas garantias laborais conquistadas em longos anos, duros anos, de luta sindical. E também não é muito melhor a situação dos trabalhadores legais: desregulamentação e flexibili­zação são os eufemismos que definem unia situação na qual cada um tem que se desenrascar como puder. Esta situação foi definida de forma certeira por uma velha operária paraguaia, que me comentou, a propósito da sua reforma de miséria:
- Se este é o prémio, como será o castigo!
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Jorge Bermúdez tem três filhos e três empregos. Ao rom­per da manhã, sai para percorrer as ruas da cidade de Quito num velho Chevrolet que faz de táxi. Desde as primeiras ho­ras da tarde, dá aulas de inglês. Há dezasseis anos que é pro­fessor numa escola pública, onde ganha cento e cinquenta dólares por mês. Quando acaba a jornada na escola pública, começa numa escola privada, até à meia-noite. Jorge Bermúdez não tem nenhum dia livre. Desde há tempos que sofre de ardores no estômago e anda mal-humorado e com pouca pa­ciência. Um psicólogo explicou-lhe que essas maleitas eram psicossomáticas e perturbações de comportamento derivadas do excesso de trabalho e recomendou-lhe que abandonasse dois dos seus três empregos para restabelecer a sanidade físi­ca e mental. O psicólogo não lhe explicou o que fazer para chegar ao fim do mês.
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No mundo às avessas, a educação não compensa. O ensi­no público latino-americano é um dos sectores mais castiga­dos pela nova situação laboral. Os professores recebem elogios, a retórica bacoca dos discursos que exaltam o labor abnegado dos apóstolos da docência que, amorosamente, moldam com as mãos o barro das novas gerações; e, além disso, ganham salários que só se vêem à lupa. 0 Banco Mundial chama à educação «um investimento em capital humano», o que cons­titui, do seu ponto de vista, uma homenagem; mas, num re­latório recente, propõe, como possibilidade, reduzir os salários da classe docente nos países onde «a oferta de professores» permita manter o nível docente.
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Reduzir os salários? Que salários? ,Pobres, mas docentes,,, diz-se no Uruguai, e também: «Tenho mais fome do que um mestre-escola.» Os professores universitários estão na mesma. Em meados de 95, li na imprensa um anúncio de um concur­so da Faculdade de Psicologia de Montevideu. Era preciso um professor de Ética, ofereciam-se cem dólares por mês. Pensei que tinha que se ser um mágico da ética para não se corrom­per com semelhante fortuna.

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