sábado, 30 de dezembro de 2006

Os Alunos

Dia após dia, nega-se às crianças o direito a serem crianças. Os factos, que troçam deste direito, ministram os seus ensinamentos na vida quotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se habituem a agir como age o dinheiro. O Mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E aos do meio, aos meninos que não são ricos nem pobres, tem-nos atados aos pés do televisor, para que desde muito cedo aceitem, como destino, a vida prisioneira; Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguirem ser crianças.
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Os de cima, os de baixo e os do meio
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No oceano do desamparo, erguem-se ilhas de privilégio. São luxuosos campos de concentração, onde os poderosos se encontram com os poderosos e nunca podem esquecer, nem por um momento, que são poderosos. Em algumas das gran­des cidades latino-americanas, os raptos tornaram-se hábito e as crianças ricas crescem encerradas dentro da bolha do medo. Habitam mansões amuralhadas, grandes casas ou gru­pos de casas rodeadas de cercas electrificadas e de guardas ar­mados, e são vigiadas dia e noite pelos guarda-costas e pelas câmaras de circuitos fechados de segurança. As crianças ricas viajam, tal como o dinheiro, em veículos blindados. Descobrem o metropolitano em Paris ou em Nova Iorque, mas nunca o usam em São Paulo ou na capital do México.
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Elas não vivem nas cidades onde vivem. Está-lhes vedado esse vasto inferno que ameaça o seu minúsculo céu privado. Para além das fronteiras, estende-se uma região de terror onde as pessoas são muitas, feias, sujas e invejosas. Em plena era da globalização, as crianças já não pertencem a lugar algum, mas as que menos lugar têm são as que mais coisas têm: crescem sem raízes, despojadas de identidade cultural e sem mais sen­tido social do que a certeza de que a realidade é um perigo. A sua pátria está nas marcas de prestígio universal que dis­tinguem as suas roupas e tudo aquilo que usam, e a sua lin­guauem é a linguagem dos códigos electrónicos internacionais. Nas mais diversas cidades e nos mais distantes lugares do mundo, os filhos dos privilegiados parecem-se entre si, em costumes e tendências, como se parecem entre si os shopping centers e os aeroportos, que se encontram fora do tempo e do espaço. Educados na realidade virtual, são deseducados na ignorãn­cia da realidade real, que apenas existe para ser temida ou comprada.
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Fast food, fast cars, fast life: desde que nascem, as crianças ricas são treinadas para o consumo e para a fugacidade e pas­sam a infância a provar que as máquinas são mais dignas de confiança do que as pessoas. Quando chegar o momento do ritual de iniciação, ser-lhes-á oferecida a primeira armadura todo-o-terreno, com tracção às quatro rodas. Durante os anos de espera, lançam-se a toda a velocidade nas auto-estradas ci­bernéticas e confirmam a sua identidade devorando imagens e mercadorias, fazendo zaapping e fazendo shopping. As ciber­crianças navegam pelo ciberespaço com o mesmo à-vontade com que as crianças abandonadas deambulam pelas ruas das cidades.
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Muito antes de as crianças ricas deixarem de ser crianças e descobrirem as drogas que atordoam a solidão e mascaram o medo, já as crianças pobres inalam gasolina ou cola. Enquan­to as crianças ricas brincam às guerras com balas de raios laser, já as balas de chumbo ameaçam os meninos de rua.Na América Latina, as crianças e os adolescentes consti­tuem quase metade da população total. Metade dessa metade vive na miséria.
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Sobreviventes: na América Latina morrem, por hora, cem crianças de fome ou de doença curável, mas há cada vez mais crianças pobres nas ruas e nos campos desta região que fabrica pobres e proíbe a pobreza. São crianças a maio­ria de todos os pobres; e são pobres, maioritariamente, as crianças. E, de todos os reféns do sistema, são as crianças as que vivem pior. A sociedade espreme-as, vigia-as, castiga-as e às vezes mata-as: quase nunca as ouve, nunca as compreende.
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Estas crianças, filhas de pessoas que trabalham tempora­riamente e que não têm nem trabalho nem lugar no mundo, são obrigadas, desde muito cedo, a viver ao serviço de qual­quer actividade de ganha-pão, esmifrando-se em troca de comida ou de pouco mais, a todo o comprimento e a toda a largura do mapa do mundo. Depois de aprender a caminhar, aprendem quais as recompensas que se dão aos pobres que se portam bem: eles, e elas, são a mão-de-obra gratuita das ofi­cinas, das lojas e das cantinas caseiras, ou são a mão-de-obra ao preço da chuva das indústrias de exportação que fabricam roupa desportiva para as grandes empresas multinacionais.
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Tra­balham nas fainas agrícolas ou nas distribuições urbanas, ou trabalham em casa ao serviço de quem aí mandar. São peque­nos escravos ou escravas da economia familiar ou do sector in­formal da economia globalizada, onde ocupam o mais baixo escalão da população activa ao serviço do mercado mundial:
nas lixeiras da Cidade do México, Manila ou Lagos, jun­tam vidros, latas e papéis, e disputam os restos de comida com os abutres; mergulham no mar de Java à procura de pérolas; procuram diamantes nas minas do Congo; são toupeiras nas galerias das minas do Peru, imprescindí­veis pela sua pequena estatura, e, quando os seus pulmões não dão mais, vão parar aos cemitérios clandestinos; cultivam café na Colômbia e na Tanzânia e são envene­nadas com pesticidas; são envenenadas com os pesticidas das plantações de al­godão da Guatemala e nos bananais das Honduras; na Malásia recolhem o látex das árvores da borracha, em jornadas de trabalho que vão de sol a sol; constroem vias ferroviárias na Birmânia; no Norte da índia, derretem nos fornos de vidro, e no Sul nos fornos de tijolo;no Bangladesh, desempenham mais de trezentas ocupações diferentes, com salários que oscilam entre o nada e o quase nada por dia sem fim; participam em corridas de camelos para os emires árabes e são ginetes pastores nas quintas de Río de la Plata; em Port-au-Prince, Colombo, Jacarta ou Recife, servem à mesa do patrão, em troca do direito a comer aquilo que cai da mesa; vendem fruta nos mercados de Bogotá e vendem pastilhas elásticas nos autocarros de São Paulo; limpam pára-brisas nas esquinas de Lima, Quito ou San Salvador; engraxam sapatos nas ruas de Caracas ou Guanajuato; cosem roupa na Tailândia e chuteiras no Vietname; cosem bolas de futebol no Paquistão e bolas de basebol nas Honduras ou no Haiti; para pagar as dívidas dos pais, colhem chá ou tabaco nas plantações do Sri Lanka e cultivam jasmins, no Egipto, com destino à perfumaria francesa; alugadas pelos pais, tecem carpetes no Irão, Nepal e índia, desde antes do amanhecer até depois da meia-noite, e quando chega alguém para as resgatar, perguntam: «O se­nhor é o meu novo amo ? Vendidas a cem dólares pelos pais, oferecem-se no Sudão para todo o tipo de tarefas sexuais ou para todo o serviço.
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Os exércitos recrutam a força crianças, em alguns pontos da África, do Médio Oriente e da América Latina. Nas guer­ras, os soldadinhos trabalham a matar e, sobretudo, trabalham a morrer: constituem metade das vítimas nas guerras africa­nas recentes. Com excepção da guerra, que, conforme conta a tradição e ensina a realidade, é coisa de machos, em quase todas as restantes tarefas os braços das meninas revelam-se tão úteis quanto os braços dos meninos. Mas o mercado laboral reproduz nas meninas a discriminação que normalmente pra­tica contra as mulheres; elas, as meninas, ganham sempre menos do que o pouquíssimo que eles, os meninos, ganham, quando ganham alguma coisa.
A prostituição é desde cedo o destino de muitas meninas e, em menor escala, também de uns quantos meninos, em todo o mundo. Por assombroso que pareça, calcula-se que existem pelo menos cem mil prostitutas infantis nos Estados Unidos, segundo o relatorio da UNICEF de 1997.
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Mas é nos bordéis rentáveis e nunca o serão. Do ponto de vista da ordem esta­belecida, começam a roubar o ar que respiram e depois rou­bam tudo o que lhes aparece à frente. Entre o berço e a sepultura, a fome ou as balas costumam interromper-lhes a viagem. O mesmo sistema produtivo que despreza os velhos teme as crianças. A velhice é um fracasso, a infância é um perigo. Cada vez há mais crianças marginais que nascem com tendência para o crirne, no dizer de alguns especialistas. Elas integram o sector mais ameaçador dos excedentes de população. A criança como perigo público, a conduta anti-social do menor na América, é o tema recorrente dos Congressos Pan-Ameri­canos da Criança, desde há uns tantos anos a esta parte.
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As crianças que vêm do campo para a cidade, e as crianças po­bres em geral, têm um comportamento potencialmente anti-social, de acordo com as advertências dos Congressos desde 1963. Os governos e alguns peritos no assunto partilham a obsessão pelas crianças doentes de violência, orientadas para o vício e para a perdição. Cada criança contém uma possível corrente do El Nino e é preciso prevenir a devastação que pode provocar. No primeiro Congresso Policial Sul-Americano, celebrado em Montevideu em 1979, a polícia colombiana explicou que «o aumento cada vez maior da população de menos de dezoito anos induz à estimativa de uma maior população POTENCIAL MENTE DELINQUENTE- (maiúsculas do documento original).
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Nos países latino-americanos, a hegemonia do mercado está a destruir os laços de solidariedade e a destroçar o tecido social coniunitária Que destino têm os ninguéns, os donos de nada, em países onde o direito de propriedade está a trans­formar-se no único direito? E os filhos dos ninguéns ? A mui­tos, que são cada vez mais, a fome empurra-os para o roubo, a mendicidade e a prostituição; e a sociedade de consumo insulta-os oferecendo aquilo que lhes nega. E eles vingam-se, lançando-se ao assalto, bando de desesperados unidos pela certeza da morte que os espera: segundo a UNICEF, em 1995 havia oito milhões de crianças abandonadas, meninos de rua, nas grandes cidades latino-americanas; segundo a organização Human Rights Watch, em 1993 os esquadrões parapoliciais assassinaram seis crianças por dia na Colômbia e quatro no Brasil.
Entre um extremo e outro, o meio. Entre as crianças que vivem prisioneiras da opulência e as que vivem desamparadas, estão as crianças que têm bastante mais que nada, mas muito menos que tudo.E são cada vez menos livres as crianças da classe média. «Que te deixem ser ou que não te deixem ser, eis a questão», soube dizer Chunny Chíunez, humorista espa­nhol. A estas crianças a liberdade é confiscada, dia após dia, pela sociedade que sacraliza a ordem enquanto gera a desor­dem. O medo do medo: o chão range debaixo dos pés, já não há garantias, a estabilidade é instável, evaporam-se os empre­gos, desvanece-se o dinheiro, chegar ao fim do mês é uma façanha. Bem-vinda, classe média, saúda um carta- à entrada de um dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires.
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A classe média continua a viver em estado de logro, fingindo que cum­pre as leis e que acredita nelas e simulando ter mais do que aquilo que tem; mas nunca lhe foi tão difícil cumprir esta abnegada tradição. A classe média encontra-se asfixiada pe­las dívidas e paralisada pelo pânico, e no pânico cria os seus filhos. Pânico de viver, pânico de cair; pânico de perder o tra­balho, o carro, a casa, as coisas, pânico de não chegar a ter o que se deve ter para se chegar a ser. No clamor colectivo pela segurança pública, ameaçada pelos monstros do crime que espreita, a classe média é aquela que grita mais alto. Defende a ordem como se fosse a sua proprietária, embora não seja mais do que uma inquilina esmagada pelo preço do aluguer e pela ameaça de despejo.
Apanhadas nas armadilhas do pânico, as crianças da clas­se média estão cada vez mais condenadas à humilhação da prisão perpétua.', Na cidade do futuro, que é já a cidade do presente, as telecrianças, vigiadas por amas electrónicas, con­templarão a rua a partir de alguma janela das suas telecasas: a rua interdita pela violência ou pelo pavor à violência, a rua onde acontece o sempre perigoso e, por vezes prodigioso, es­pectáculo da vida­.

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